Os portugueses podem morrer sufocados pelos pulmões, mas partem felizes porque antes podem ver por uma última vez a visão do paraíso no areal de Carcavelos.

Lisboa é a capital da pandemia. Foram os turistas e os infectados proliferam pela zona como esquadras de gafanhotos que se estendem pela savana. Se o confinamento prejudica a psique nacional, a psicologia precária do ar livre e da normalidade prejudica a saúde pública como o cianeto num sumo de laranja numa esplanada à beira-mar. Os Portugueses podem morrer sufocados pelos pulmões, mas partem felizes porque antes podem ver por uma última vez a visão do paraíso no areal de Carcavelos. Portugal é uma selva à beira mar abandonado.

Depois há uma legião de proletários, os ditos “trabalhadores essenciais”, que mantêm na sombra os mecanismos terrestres da sociedade a funcionar. Vivem em subúrbios assinalados entre o mapa das circulares, trabalham por turnos em aglomerados tentativamente higiénicos, preenchem todo o tipo de contentores com todo o tipo de produtos que acabam a brilhar nos supermercados como diamantes na montra de uma joalharia. Os Portugueses fascinados pela abundância aumentam de peso como animais em cativeiro.

Convirá salientar que Lisboa não é apenas Lisboa. Para além da Lisboa dos guias internacionais existe uma selva de betão servida por uma rede deficiente de transportes públicos, na maioria dos casos garantida por privados, e que fazem a circulação da mercadoria humana para a produção de trabalho, logo de bens, logo de compras, logo a aparência consumista da normalidade. Este arquipélago de comunidades espalhadas pelo oceano de uma terra quase de ninguém reúne gente de todo o mundo, de todas as origens, que muitas vezes fogem à jurisdição convencional das instituições. São países dentro de um País, dormitórios indiferenciados de uma realidade complexa, multicultural, pobre, precária. De certo modo, estas populações são os apátridas urbanos do século XXI, ignorantes e ignorados de uma qualquer Praça do Município.

A Lisboa cosmopolita está cercada por uma realidade típica do Terceiro Mundo, bairros extraídos de Angola ou de Cabo Verde, urbanizações modulares ao estilo da Venezuela, enclaves eslavos que escorreram lentamente da Ucrânia, Portugueses pobres expulsos do centro da cidade pela explosão da prosperidade e de um Portugal na moda. As supremas autoridades da Nação não previram a urgência de uma intervenção nessas zonas de guerra, zonas onde a alternativa que se coloca é entre comer ou comprar álcool-desinfectante, zonas onde as máscaras são acessórios de luxo, a proximidade social a norma, o convívio comunitário a única rede de protecção social. A política pandémica é meramente reactiva e ninguém é responsável porque tudo é normal perante o vírus aleatório.

No entanto, o Primeiro-Ministro frequenta os restaurantes para estimular a gula da Nação; o Presidente da República mergulha nas águas frias do Atlântico sem que consiga evitar a lágrima furtiva de uma recordação das águas quentes de Moçambique; o mesmo Presidente da República que se hospeda num Hotel da capital, pois porque sim, pois sobretudo para inglês ver, vir e gastar. O comportamento dos altos dignitários pode ter a boa intenção de estimular a economia, mas a encenação transpira a demagogia, demonstra um optimismo artificial, transmite a falsa ilusão de segurança sobre uma situação que ninguém sabe nem ninguém controla.

No arquipélago das comunidades impõe-se como necessidade e urgência uma intervenção humanitária robusta mais uma campanha de formação e informação em larga escala, no limite a imposição de cordões sanitários para controlo das populações e confinamento das infecções. Na Lisboa cosmopolita o laxismo solar também recomenda a atenção das autoridades, pois o vírus é hábil na dispersão e introduz-se na comunidade pela irresponsabilidade individual e pelo novo-riquismo pós-pandemia. Mas existe uma consolação quase divina, um cântico quase celeste, no anúncio de um Fundo de Recuperação vindo da Europa e que atinge o volume estratosférico dos 26,3 mil milhões de euros. O novo milagre democrático, o novo milagre português, é transformar os euros em vacinas injectáveis.

O arquipélago dos subúrbios expõe um proletariado precário e quase novecentista, mão-de-obra barata para o funcionamento de uma economia cujos empresários se entregam ao Estado na expectativa de ajudas e de subsídios. O risco foi riscado da equação e a ideia de uma “destruição criativa” é uma noção para economistas académicos, privilegiados, liberais. O princípio da economia moderna é a vertigem do movimento – matéria-prima, transformação, produto, lucro, salário. Quando a linha de montagem fica em silêncio, a prosperidade desaparece, a insolvência é o destino. A pergunta parece óbvia – onde está e onde fica toda a riqueza produzida?

A pandemia trouxe à superfície qualquer coisa de insalubre nas sociedades modernas. Um sentimento de estagnação, a esterilidade das ideias, a esclerose das soluções políticas, a ficção das visões tecnocráticas. A ordem vigente mostra o rosto marcado pelo cansaço, pela repetição, pela decadência. Catástrofe ou Renascimento, o teste final reside talvez no arquipélago das grandes circulares que rodeiam a Cidade.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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