Cavaco e a Democracia dos Livros

Portugal precisa de uma nova geração pós-cavaco. Portugal precisa de um novo discurso político. Portugal precisa de outros políticos e de outras ideias políticas.

Em Portugal não se escrevem memórias políticas. Ninguém quer deixar em testamento ressentimentos passados e ódios que se prolongam por gerações. Livros escritos por políticos são o exemplo de um revisionismo suave e democrático. Falta coragem para os erros, falta visão para o futuro, falta sobretudo a urgência de escrever para mudar. Falta com aflição uma reflexão sobre Portugal para se entender uma solução de continuidade e uma direcção para o progresso. De certo modo, a literatura política é a versão proustiana de uma busca pelo tempo perdido. O tempo perdido por um País.

Cavaco Silva publica agora “O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar”. Sobretudo à direita, o país político estrangulado pela falta de ideias procura nas linhas e nas entrelinhas o segredo da governação, a receita para a modernização, a solução para o futuro. Há alguma ironia no título do livro e na prática do político. Cavaco Silva não é um político com uma “cultura literária ou humanista” e todo o seu exercício político foi, simultaneamente, uma negação da política e uma afirmação triunfal da tecnocracia. Não existe pois uma qualquer reflexão ideológica sobre o passado de uma ilusão e o futuro de uma realização. A governação de Cavaco Silva foi um exercício em prosa económica sem tempo para as subtilezas da arte política.

Cavaco Silva nunca foi um político como os outros. Aparece no Portugal em transição para a Europa com ideias simples, directas, populares – “nunca mais voltaremos a apertar o cinto”, “abandonar a cauda da Europa”, “a metamorfose da modernização”, a promessa do “novo homem português”. Curiosamente ou talvez não o seu projecto político continua por realizar no país contemporâneo. Este sempre foi o método e a marca de Cavaco, o “homem providencial” que aparece no centro do establishment para agitar e mudar o establishment. Na democracia portuguesa Cavaco não tem antecedente nem sucessor. E depois de Cavaco Portugal fica órfão em suspenso de uma ideia para o futuro.

Esta é a razão pela qual Cavaco Silva une a direita. Une a direita porque simboliza um projecto de centro-direita para os destinos de Portugal. Esta é a razão pela qual Cavaco Silva une a esquerda. Une a esquerda porque estilhaça o monopólio da esquerda na sua pretensa superioridade moral e política. O PS em particular continua a perguntar “quem é este político sem biografia” sem entender nada da história política nem perceber um átomo das exigências de uma democracia portuguesa em crise. Democracia portuguesa que o PS reivindica como a sua grande ideologia política. O ódio político a Cavaco é a grande ideologia da esquerda unida.

Cavaco Silva não é um político dado a estados de alma nem a exaltações sentimentais nem a angústias existenciais. Cavaco é um político que acredita que o “destino” o encarregou de regenerar a Pátria. E se este livro revela uma certa angústia que se evapora da prosa simples é também a convicção de que Portugal não se moderniza e vegeta na mediocridade democrática de um PS estático.

Não adianta procurar analogias para a actualidade do consulado de Costa. Este é o vício da política portuguesa: a facilidade, o imediatismo, a preguiça de pensar os protagonistas políticos e as práticas políticas de um regime que celebra meio século. A discussão política em Portugal é assim a pretensão da profundidade à superfície das coisas complexas. Para o Presidente Cavaco Silva, o país é a “Quinta-feira e Outros Dias”. Para António Costa o país é os “Outros Dias e Quinta-feira”. Existe uma “corrente cavaquista” com dimensão nacional e existe uma “corrente costista” nos corredores socialistas. Esta é a razão pela qual Cavaco mudou Portugal e Costa governa a estagnação de Portugal. Cavaco Silva foi e continua a ser uma figura que une e que divide – o grande unificador é também o grande polarizador.

Toda esta intervenção política de Cavaco Silva tem como motivação próxima algo que a experiência política de 20 anos e a distância pós-Belém lhe ensinaram – a percepção profunda de que o Estado é impotente na sua capacidade para transformar a sociedade. Esta inquietação e angústia num político octogenário revelam a natureza não política de um protagonista da democracia portuguesa que acreditou e acredita que a sua missão falhou. Na afirmação do sucesso está a confissão do fracasso. E na sequência final do fracasso existe um António Costa. Cavaco não escreve para Costa. Cavaco escreve para o país à procura de um não-Costa. Pode parecer pouco, mas encerra todo um programa político.

Para António Costa a descoberta de que o Estado não consegue transformar a sociedade é uma evidência escolar, pois assiste a essa impotência com a gestão dos interesses correntes e o cálculo das oportunidades. O cálculo de um país resignado.

No entanto, Portugal precisa de uma nova geração pós-cavaco. Portugal precisa de um novo discurso político. Portugal precisa de outros políticos e de outras ideias políticas. No luar lá fora na noite lenta, Portugal precisa que a política agite as coisas que fazem a sombra mexer.

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