CGD: Vender agora? Um debate que volta sempre

Privatizar a CGD pode parecer uma medida coerente com a teoria económica liberal. Mas a realidade portuguesa exige cautela.

A ideia de privatizar a Caixa Geral de Depósitos (CGD) é uma dessas questões que regressa ciclicamente ao debate económico e político em Portugal. A presença do Estado num banco comercial de grande dimensão é claramente uma anomalia no panorama europeu. Sendo que a sua defesa assenta na ideia de que a CGD se transforma num ativo estratégico que convém preservar aquando de momentos de instabilidade financeira ou de perda de soberania económica nacional do sector (veja-se venda do Novo Banco).

Mas a questão merece mais do que impulsos ideológicos. Exige análise, comparação internacional e uma leitura realista do funcionamento do sistema financeiro português.

O modelo português: uma exceção no mapa europeu

Portugal tem uma configuração institucional bancária atípica. Enquanto países como a Alemanha, França ou Itália distinguem claramente entre bancos de fomento e banca comercial privada, Portugal mantém um banco público universal (a CGD) e uma instituição de fomento (o Banco Português de Fomento) ainda em consolidação.

Na Alemanha, a KfW é pública e poderosa, mas não opera no retalho. Em França, a Bpifrance atua em investimento produtivo e inovação, sem competir com os grandes bancos. Em Portugal, a CGD acumula desde sempre duas missões: competir em todos os segmentos e, ao mesmo tempo, assegurar funções implícitas de interesse público.

Já o Banco de Fomento, criado em 2020, não tem ainda a dimensão nem o grau de autonomia dos seus congéneres europeus. Em vez de uma lógica proativa de financiamento ao investimento estratégico, tem sido sobretudo um veículo de gestão de fundos comunitários, com ainda pouca visibilidade pública e capacidade operacional limitada, algo que, contudo, a nova Administração tem procura alterar de forma bastante assertiva e clara.

É de realçar de que; contrariando a ideia de que os bancos públicos são exclusivos de economias dirigistas, vários países europeus com tradição liberal mantêm bancos públicos com objetivos bem definidos e governação profissionalizada. Estes exemplos ilustram que a intervenção pública no setor bancário pode ser compatível com economias de mercado abertas e concorrenciais:

  • Alemanha: a maior economia da Europa mantém uma forte rede de bancos públicos, incluindo os Landesbanken e o KfW, banco de desenvolvimento federal, 100% detido pelo Estado. O KfW é hoje um dos maiores bancos públicos do mundo, financiando inovação, PME, habitação e transição energética. Atua em regime concorrencial, mas com mandato público.
  • Países Baixos: Apesar da forte orientação liberal, a Holanda detém o BNG Bank, que financia municípios e projetos públicos. Após a crise de 2008, o Estado também assumiu a propriedade da ABN AMRO, ainda parcialmente pública. A abordagem é pragmática: preservar instrumentos públicos em áreas onde o mercado falha.
  • Finlândia: a Finnvera é o banco público nacional especializado em financiamento de exportações e apoio às PME. Atua com critérios de mercado, mas com risco assumido parcialmente pelo Estado, preenchendo falhas na oferta de crédito privado.
  • Suécia: o SBAB Bank, controlado pelo Estado, dedica-se sobretudo ao financiamento habitacional. Compete com os bancos privados e contribui para estabilidade e acesso ao crédito num dos mercados mais desenvolvidos da Europa.
  • Dinamarca: a Dinamarca mantém, no entanto, a EKFDanish Export Credit Agency, uma instituição pública que apoia empresas dinamarquesas nos mercados externos através de financiamento e garantias.

Este posicionamento europeu evidencia uma distinção conceptual frequentemente ignorada no debate político português: a diferença entre libertarismo e liberalismo europeu. Enquanto o libertarismo — com maior expressão no mundo anglo-saxónico e em particular nos Estados Unidos — defende um Estado mínimo em todas as esferas, o liberalismo europeu contemporâneo aceita a intervenção pública seletiva sempre que justificada por falhas de mercado, interesse público ou estabilidade sistémica. Essa abordagem pragmática permite, por exemplo, que países como a Alemanha ou a Finlândia mantenham bancos públicos robustos sem colocarem em causa os princípios da concorrência e da economia de mercado. Mesmo nos Estados Unidos, berço do liberalismo económico moderno, existe um banco público federal: o U.S. Export-Import Bank, que financia e garante operações de exportação de empresas norte-americanas. Embora com mandato limitado, a sua existência confirma que até nos sistemas mais liberalizados, o setor público bancário pode ter um papel instrumental — desde que claramente delimitado e orientado para objetivos estratégicos.

Os argumentos a favor da privatização

Do lado dos que defendem a privatização da CGD, há três argumentos principais. O primeiro é de coerência ideológica: num mercado liberalizado e altamente regulado, o Estado não deveria ser um operador direto, sobretudo num setor concorrencial como a banca. A simples presença pública pode inibir concorrência, distorcer incentivos e dissuadir novos concorrentes a entrar no mercado.

O segundo argumento é o da eficiência de alocação de capital. A CGD está capitalizada e apresenta lucros consistentes. A sua venda, parcial ou total, poderia libertar recursos significativos para o Estado, seja para investimento público, redução da dívida ou reforço do próprio Banco de Fomento.

Finalmente, existe o risco político. Apesar das melhorias na sua governação após 2017, o receio de captura por interesses partidários ou económicos persiste. A memória de crédito mal atribuído e de prejuízos ocultos ainda está fresca, e os críticos alertam para a possibilidade de recaída.

Os argumentos para manter a Caixa pública

Por outro lado, os argumentos para manter a CGD como banco público são igualmente relevantes. Desde logo, o de estabilidade sistémica. A CGD foi decisiva em momentos de crise — como na pandemia ou na crise financeira — assegurando o fluxo de crédito em momentos em que os privados retraíram a sua exposição.

Além disso, a CGD é o único grande banco de controlo nacional num sistema bancário altamente concentrado e com operadores estrangeiros dominantes. Num contexto de perturbações geopolíticas e realinhamentos económicos, manter um instrumento financeiro sob controlo do Estado pode ser um trunfo estratégico — sem necessidade de recorrer a nacionalizações de emergência.

Outro ponto crítico é o da eficiência com impacto público. A CGD opera com rácios de rentabilidade comparáveis ou superiores aos seus pares privados, sem deixar de assegurar serviços em regiões de baixa densidade e a segmentos de negócio menos lucrativos. Não é atualmente um peso para o contribuinte — é uma empresa pública com lógica empresarial, que cumpre um papel corretivo de falhas de mercado.

Entre 2019 e 2024, a Caixa distribuiu mais de 2,1 mil milhões de euros em dividendos, contribuindo diretamente para as receitas públicas — num contexto em que se discute a sustentabilidade das finanças públicas e a redução da dívida. A título de exemplo, só em 2023, a CGD pagou 352 milhões de euros ao acionista Estado. Estes montantes assumem particular relevância se comparados com os dividendos distribuídos pelos restantes bancos em Portugal, maioritariamente privados. Além disso, contrastam com o apoio dado na década anterior, o que demonstra que o investimento público, quando bem conduzido, pode gerar retorno e criar valor para o contribuinte.

Por fim, a sua presença reforça a concorrência no setor. Num mercado oligopolista, um operador público forte atua como disciplinador implícito de preços e práticas. A existência da CGD protege os consumidores, mesmo que indiretamente.

Privatizar ou reformar? O verdadeiro debate

Talvez a questão mais relevante na minha opinião não seja apenas se o Estado deve ou não deter a CGD, mas como deve geri-la. É claro que a Caixa deve continuar a operar com autonomia, exigência de resultados e governação profissionalizada; mais ainda, o papel do acionista público deve ser de exigência, mas ao mesmo tempo distante das decisões do dia a dia do Banco — ou seja, deve ter um papel não operacional e claramente ausente do porto de vista de interferência política.

Em paralelo, é urgente clarificar o papel do Banco Português de Fomento. Sem um banco de fomento robusto, a CGD é empurrada para missões que não lhe deviam caber. Portugal deve aprender com os modelos alemão e francês: separar com rigor a banca comercial da banca de desenvolvimento, dando ao BPF os recursos, o mandato e o foco que hoje lhe faltam.

Privatizar a CGD: risco ou oportunidade?

A decisão de vender a CGD não é trivial. Pode libertar capital e cumprir uma agenda mais liberal. Mas também pode fragilizar a posição do Estado num setor estratégico, reduzir o grau de concorrência efetiva e deixar o país mais vulnerável a lógicas de controlo externas.

Num cenário ideal, o debate não se faz entre Estado e mercado, mas entre diferentes formas de presença pública — mais inteligente, mais estratégica, mais disciplinada. A CGD, bem gerida, será hoje parte da solução e não do problema.

Conclusão: uma decisão estrutural, não apenas financeira

Privatizar a CGD pode parecer uma medida coerente com a teoria económica liberal. Mas a realidade portuguesa — marcada por concentração bancária, dependência externa e fragilidade institucional no fomento — exige cautela.

Manter a CGD pública é viável e desejável desde que o Estado atue com disciplina, rigor e clareza de missão. Não se trata de nostalgia estatista, mas de soberania inteligente. Portugal precisa de menos Estado em muitas áreas, mas noutras precisa de um Estado mais competente, mais seletivo e mais estratégico.

Logo, num momento em que a Caixa é eficiente, rentável e gerida com critérios claros e transparentes e tendo nós um mercado bancário concentrado, a sua privatização pode ser mais ideológica do que racional.

  • Colunista convidado. Economista e professor na FEP e na PBS

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