Chapéus-de-chuva em Hong Kong
Em Hong Kong parece que existe uma rede feita de ninhos de aranha que protege e conduz os manifestantes ao anonimato e à segurança provisória restabelecida.
Se numa noite de Verão um viajante olhar para as ruas de Hong Kong verá um cenário entre um romance e a realidade. Os drones que fornecem imagens versáteis da cidade transformam os acontecimentos na narrativa de um vídeo game, demasiado real para não ser verdade, demasiado perigoso para não ser ficção.
Nas ruas os manifestantes parecem um exército de ninjas negros, equipados com óculos, megafones, mochilas, máscaras e chapéus-de-chuva. Aparecem e desaparecem sob o olhar das forças policiais, na confusão do gás lacrimogéneo, no labirinto das balas de borracha, nas ruas confusas que descem para as estações de metro.
Em Hong Kong parece que existe uma rede feita de ninhos de aranha que protege e conduz os manifestantes ao anonimato e à segurança provisória restabelecida. O que não deixa de ser extraordinário é a metamorfose cinemática dos protestos, uma narrativa retirada dos filmes de Bruce Lee e que os jovens de Hong Kong absorvem como o mantra virtual dos guerrilheiros na selva urbana — “Sem forma, tal como a água”.
Do mesmo modo, os feixes de laser cruzam o ar da antiga Colónia como sinais vindos de um outro Mundo, luzes coloridas que voam das mentes humanas com o poder de transformar os sonhos em realidade. Não estamos no set de um filme de Kung Fu, mas é de novo a personagem de Bruce Lee no enredo de uma fita de acção e de fantasia — “O guerreiro de sucesso é o homem médio com o foco de um laser”.
Hong Kong é um lapso geográfico entre o Ocidente e o Oriente, um olhar politicamente atento consegue identificar a camada culturalmente híbrida que se formou naquele território, a variação de uma cidade invisível onde a superfície aponta para Oriente ao mesmo tempo que a profundidade aponta para Ocidente.
O conflito no coração da identidade de Hong Kong não tem resolução, pois representa um projecto eternamente inacabado, um projecto eternamente adiado, para que a sua destruição não atraia todas as forças da disciplina, da conformidade, da obediência ao Império do Meio.
O poder vermelho assalta os protestos como quem assalta uma ideia com instrumentos de guerra. As forças policiais são ainda a armadura vazia que imagina ser a figura do Grande Imperador. Convirá lembrar que Hong Kong é uma região especial da China, com uma moeda própria, um sistema legal baseado na “common law” britânica, com um passaporte distinto do da República Popular e com uma fronteira que separa o Território do Grande Continente.
Na lógica da Declaração Conjunta, pelo Princípio de “Um País, Dois Sistemas”, Hong Kong tem um estatuto que rivaliza com a sua identidade híbrida, um Território em forma de enclave político, económico e cultural, com a vontade e a determinação de existir, para além de 2047, com uma identidade específica, estável, duradoura, um Planeta entre dois Mundos, o Mundo presente de um Território Autónomo e o Mundo futuro de uma nova absorção no Império Vermelho.
A pausa política de Beijing é a ilustração de um dilema em forma de pesadelo – tolerar o desafio à autoridade central ou esmagar com a força militar a Revolução das Cores em Hong Kong. Com incidência no PIB, o Território já foi mais importante para a China, uma vez que se em 1993 representava ¼ do PIB chinês, em 2018 tal contribuição não ultrapassa os 3%.
A grande questão reside na dimensão política e na imagem de uma China Global e aberta ao Mundo e cujo grande portal do tempo está precisamente situado em Hong Kong. Praça financeira, interposto comercial e político entre dois Mundos, o Território é um diamante na coroa de Beijing, demasiado valioso para conferir sem restrições a abertura da autonomia, sem referir as vozes na antiga Colónia que reivindicam a Independência, demasiado precioso para ser subjugado pelas forças armadas. Aliás, uma intervenção do Exército de Libertação Popular em Hong Kong seria uma catástrofe para o Território, mas sobretudo um desastre para as ambições Globais da China como potência política e económica de referência e de confiança.
A China encontra-se entre duas Montanhas e parece consultar dois baralhos de Tarot em simultâneo, enquanto o Ocidente observa a narrativa do silêncio como um conflito entre dois castelos com destinos cruzados no centro de Beijing. Se numa noite de Verão o viajante olhar para as duas sequências de cartas verá duas soluções políticas a deslizar pelo labirinto literário das mentes Orientais, o viajante verá o Dragão das palavras que se formam na grande Cidade Proibida, suspenso de todos os destinos e de todas as possibilidades.
Hong Kong poderá vir a ser um corpo num saco de plástico preto ou uma prostituta nas margens da “Road and Belt Initiative”, mas o espectro da liberdade com a sua infinita sequência de enredos e que tomam conta do Mundo haverá de sobreviver a um possível massacre, do mesmo modo que uma obra de arte consegue sobreviver à desumanidade de um Mundo pintado de negro.
A China enfrenta as dúvidas de um Gigante cortado ao meio pelos gritos de uma China alternativa nas ruas de Hong Kong. Mas os Regimes Policiais são desprovidos de alma e conhecem apenas a contabilidade do domínio absoluto. Dois viajantes ocasionais abrigam-se dos fumos do ópio num restaurante internacional. As malas Louis Vuitton brilham ao ritmo do tempo de um relógio Rolex e ao som das sirenes da polícia, enquanto as bombas explodem, enquanto os caixotes ardem, enquanto Hong Kong desaparece nos painéis luminosos.
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