Checkpoint Gémeas

Não existe um checkpoint entre os dois lados do Atlântico. Mas a viagem das gémeas é também a história de um mundo que falhou na sua aspiração independente e soberana.

E é assim que as boas intenções acabam em investigações. Somos todos portugueses de aquém e de além-mar, mesmo se a relação de identidade, a matriz cultural, a relação afectiva, não passe de uma memória volátil baseada no passado de um membro distante da família. O vínculo da nacionalidade é na circunstância das gémeas apenas um pretexto legal para extrair um tratamento privilegiado de um país que não passa de uma memória de família. Vir a Lisboa fotografar a estátua de Pedro Álvares Cabral, ter acesso a medicação no valor de 4 milhões de euros e depois voltar para o Brasil. É a versão de um “turismo médico” inacessível ao comum e vulgar português doente e esquecido numa fila de um centro de saúde.

Revolta-se o mais sensível leitor pelo facto do colunista expandir uma chocante insensibilidade perante um caso humanitário que envolve duas crianças. Acontece apenas que as crianças são o fundamento clínico para o exercício de uma teia de influências, uma corrente de privilégios, um muro de opacidade, mais o silêncio de quem sabe que não agiu de modo nem ético nem legal. O argumento humanitário é na circunstância um sucedâneo do cinismo de quem se sente culpado. E por falar em argumentos éticos e em superioridade moral resta ainda a pergunta – Afinal a vida humana terá um preço?

Mas o argumento que se pretende explorar é político e não emocional. Falta nesta equação das gémeas a vaidade, o poder, a influência de uma personagem que não foi nomeada para um cargo público, que não foi eleita para uma qualquer função de representação nacional. Estamos pois a falar numa figura que se dedica aos negócios privados, que apenas se representa a si mesmo. No entanto, a personalidade exerce um cargo de poder na República Portuguesa que se pode designar por Embaixador Biológico do Presidente da República. A presunção do termo está de acordo com a presunção das acções, uma espécie de circulação política oficiosa e invisível que facilita os contactos e contorna as regras. No caso das gémeas, as diligências são legitimadas pela causa humanitária. Mas a pergunta política do momento é saber se o Embaixador Biológico do Presidente da República teve ou tem outras intervenções como “facilitador” nacional de outras causas menos confessáveis.

Obviamente que a Administração Pública e os governantes envolvidos não ficam muito bem neste retrato da República. Primeiro, a revelação de uma cultura política em que o Estado é uma fonte de poder pessoal e não um instrumento ao serviço do progresso da Nação. Depois, a revelação de uma atitude temerosa e subserviente relativamente àqueles que, independentemente dos seus talentos e capacidades são beneficiados pela lotaria genética. Ser Embaixador Biológico do Presidente da República é ser membro de uma classe superior, a quem se deve agradar e obedecer. No fundo um princípio monárquico absoluto incompatível com a Ética Republicana. Mais ainda, a perpetuação de uma vinculação política típica de um clientelismo em que há troca de favores, mas que se desconhecem vantagens patrimoniais. A grande vantagem reflecte-se no património simbólico e prestígio social de quem extrai o favor. A grande vantagem reflecte-se na segurança política do património simbólico do detentor do eventual cargo político. Assim se fazem grandes carreiras na política e grandes carreiras nos negócios internacionais.

Embora o Presidente da República pareça não ter tido interferência no processamento público e secreto das gémeas, a sua imagem política sai obviamente ensombrada pela circunstância. Não pode o Presidente da República ser responsabilizado pelo que o seu Embaixador Biológico tenha agilizado no exercício de um apelido comum. No entanto, tendo sabido do caso prévio a outras démarches, o Presidente não poderia ficar familiarmente alheio a uma circunstância que tinha e tem repercussões políticas pouco edificantes. O Presidente da República conhece Portugal, o Presidente conhece sobretudo o poder desta deferência social à qual a política republicana é tantas vezes permeável. Confiar no bom senso de alguém baseado apenas no critério da filiação não parece nem avisado nem compreensível numa personalidade politicamente experiente e criadora de factos políticos. No caso das gémeas tropicais, a omissão do Presidente da República acabou por criar um facto político que paira como uma nuvem cinzenta nos jardins de Belém.

Não existe um checkpoint entre os dois lados do Atlântico. Mas a viagem das gémeas é também a história de um mundo que falhou na sua aspiração independente e soberana. A Europa continua a ser o centro obsessivo de todas as necessidades e de todas as esperanças. E a esperança é o último recurso da Humanidade.

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