Colocar as poupanças ao serviço da economia
As afirmações do ministro da Economia são seguramente bem intencionadas, mas há que reconhecer que os bloqueios ao desenvolvimento do mercado de capitais são muitos.
Há dias, por ocasião da apresentação de um estudo da OCDE sobre o mercado de capitais em Portugal, o senhor ministro da Economia defendeu a importância de “colocar as poupanças dos portugueses ao serviço da economia nacional”, acrescentando ainda que “se não desenvolvemos o mercado nacional, as poupanças dos portugueses vão buscar aplicações no exterior”. As afirmações do ministro Siza Vieira foram seguramente bem-intencionadas e são certamente oportunas numa altura em que se discute o relançamento da união do mercado de capitais na União Europeia. Todavia, havendo medidas que podem ser implementadas no imediato, há que reconhecer que os bloqueios ao desenvolvimento do mercado são muitos.
Como aqui tenho escrito desde há muito (por exemplo, ainda recentemente em “A União do Mercado de Capitais”, as empresas portuguesas precisam de se recapitalizar e precisam de o fazer com urgência. Desde logo com capital próprio, não com mais dívida. Os dados são esclarecedores: em Portugal, cerca de 25% das empresas apresentam capital próprio negativo, 30% evidenciam EBITDA negativo e 35% produzem resultados líquidos negativos (fonte: Boletim Estatístico de Setembro do Banco de Portugal). Há ainda aproximadamente 15% do número total de empresas cujos gastos de financiamento são superiores ao EBITDA – são as empresas “zombie”, que contribuem negativamente para o emprego e para o investimento. Ora, com a recessão económica todos aqueles números vão agravar-se. A situação vai, pois, piorar.
O estudo da OCDE vem chamar a atenção para factores importantes que dificultam o desenvolvimento do mercado de capitais em Portugal, tais como:
- a complexidade processual e regulatória associada à emissão e manutenção de valores cotados, os elevados custos de intermediação financeira associados às emissões, a falta de liquidez dos títulos, o desinteresse dos investidores, a reduzida dimensão dos emitentes, entre outros.
As razões apresentadas não são propriamente novidade; a maioria afecta o mercado nacional há muito. De resto, conforme constata o estudo da OCDE (p. 37), desde 2012 somente 4 (quatro!) empresas foram colocadas em mercado através de ofertas públicas de venda. A realidade é francamente desoladora.
A redução do número de colocações em bolsa através de ofertas públicas de venda não se limita a Portugal. Trata-se de uma tendência comum a muitos outros mercados desde há algum tempo. Nos Estados Unidos da América, que (ainda) continuam a ter o mercado de acções mais dinâmico do mundo, existem hoje cerca de 3.600 empresas cotadas em bolsa. Ou seja, o número de empresas cotadas é hoje aproximadamente igual a metade do número de cotadas que existiam em 1996, por altura do célebre discurso de Alan Greenspan quando este falou de “exuberância irracional” nos mercados. O número de micro e pequenas empresas era então muito superior ao que sucede hoje.
A literatura académica – muito bem resumida num excelente estudo da Morgan Stanley, publicado recentemente sob o título de “Public to Private Equity in the United States: a Long-Term Look” – enumera alguns factores que justificam a erosão do número de cotadas nas últimas décadas. Uma das razões está no facto de em alguns países, como nos EUA, o investimento intangível ser hoje dominante face ao investimento tangível. Trata-se de uma mudança estrutural extraordinária que, por um lado, mostra a forma como hoje se trava a batalha pela vantagem competitiva, mas que, por outro, leva também a que as empresas necessitem hoje de menos capital para financiarem as suas operações do que outrora.
Em Portugal, o problema está não só na falta de propensão para cotar, mas também na falta de candidatos à cotação num mundo que valoriza cada vez mais o investimento em intangíveis. Pior ainda, para além dos limites do lado da oferta, há limites tão ou mais significativos do lado da procura. Aqui encontramos a reduzida dimensão dos activos financeiros detidos pelos agregados familiares, as tais poupanças a que se referia o ministro, que representam apenas 50% do PIB face aos mais de 100% do PIB na média da União Europeia (fonte: “Capital Markets Union, Key Performance Indicators, 2nd Edition, AFME”). E encontramos também o desinteresse dos próprios intermediários financeiros no desenvolvimento do mercado de capitais.
O que fazer então para dinamizar o mercado de capitais em Portugal? Entre as medidas do lado da oferta, há que enfatizar a importância da adaptação tecnológica e da inovação, preferencialmente através de direitos de propriedade intelectual ou afins, porque é neste tipo de investimento que reside hoje a preferência dos investidores. Trata-se, antes de mais, de uma mudança de paradigma empresarial – apenas uma minoria de empresas em Portugal tende a pensar naqueles moldes – e isto levará tempo. Logo, sem prejuízo da pedagogia que pode ser feita, é uma mudança que depende essencialmente da vontade dos donos das empresas e da capacidade de estes se ajustarem à destruição criativa que ocorre em momentos como este.
De igual modo, ainda do lado da oferta, a inovação passa também pela forma como são realizadas as emissões de títulos. Nos últimos anos ganharam destaque os chamados “direct listings” através dos quais accionistas de empresas não cotadas têm colocado acções, já existentes, à negociação em mercado cotado sem passarem por uma oferta pública de venda. É uma forma de trazer mais empresas ao mercado e de forma menos onerosa. Quanto às tradicionais ofertas públicas de venda, estas precisam de ser repensadas. Nos EUA há empresas que estão a testar novos processos de ofertas públicas, assentes em leilões mais transparentes, a fim de maximizar o encaixe obtido pelos emitentes e evitar tratamentos preferenciais.
Também a regulação tem de abraçar a inovação. É impossível que se continuem a restringir as ofertas de cripto activos numa altura em que estes activos colhem tanto interesse, sobretudo dos mais jovens, e em que a própria evolução tecnológica favorece a sua adopção. A regulação deve ir ao encontro dos activos alternativos, em vez de os reprimir. Por exemplo, a emergência das “security token offerings”, na prática a evolução das “initial coin offerings” para activos regulados e securitizados, dotando os seus detentores de direitos idênticos aos de accionistas e obrigacionistas convencionais, seria uma avenida a seguir também em Portugal. O mesmo deveria suceder com as “altcoins” a fim da sua utilização como “moeda” de emissão de títulos.
Do lado da procura o problema é mais complexo. Em Portugal, a transferência de fundos de agentes económicos com excesso de liquidez para agentes que evidenciam escassez de liquidez, através da intermediação financeira e do mercado de capitais, é muito dificultada pela escassez de excesso de fundos! Ainda assim, há formas de tornar o mercado mais interessante. A introdução de deduções fiscais mais generosas associadas ao investimento directo ou indirecto em acções é uma hipótese. Outra hipótese consiste na criação de fundos-índice que invistam em todos os títulos do mercado português, e não apenas nos nomes que toda a gente conhece, porque sem a participação de institucionais – idealmente mais do que aqueles que hoje existem – a liquidez será indesejavelmente diminuta em prejuízo dos novos entrantes mais pequenos.
No limite, se nada disto funcionar, haverá sempre a derradeira hipótese do financiamento através de investidores estrangeiros. Em teoria, isto deveria ser possível através da bolsa portuguesa que está, ela própria, inserida num grupo multinacional. Mas não sendo possível beneficiar de uma plataforma transnacional, existem outros mercados onde as empresas portuguesas poderão tentar a sua sorte. Há quem o tenha feito de forma bem-sucedida, por isso, se o interesse for genuíno e as condições de partida adequadas, não deverão faltar investidores disponíveis para, pelo menos, ouvirem o “investment-case”.
Com as taxas de juro a zero e muitos institucionais em busca de prémios de risco cada vez maiores, nos próximos anos não faltará liquidez por esse mundo fora. O risco será mesmo a “exuberância irracional”!…
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