Como maltratar o 25 de Abril com uma discussão surreal

Claro que o 25 de Abril pode e deve ser assinalado na Assembleia da República de forma solene, como sempre acontece. Não há nenhum motivo para que isso não aconteça. A questão não é “se”, mas “como".

“A igreja de S. Paulo em Faro vai realizar uma missa Pascal (por não ter sido permitida no próprio dia uma das celebrações mais importantes para todos os cristãos) no próximo domingo. A entrada é sujeita a inscrição pois só serão admitidas 130 pessoas na igreja. (…) Não serão admitidas máscaras de proteção individual”. Na manhã deste domingo cruzei-me com este post no Facebook, na página pessoal de uma professora universitária.

O conteúdo do post não é verdadeiro, confirmei depois – não há, sequer, uma igreja de S. Paulo em Faro. Mas ilustra o que a quebra de autoridade moral do Estado e dos seus órgãos políticos pode vir a representar no comportamento das populações. E o pior que pode acontecer numa discussão destas é o tribalismo habitual, ao nível do pior das claques de futebol: quem não está comigo está contra mim. Mas é aí que já estamos.

Sou religiosamente agnóstico e fanaticamente devoto do 25 de Abril, da liberdade e do patrono Salgueiro Maia. Mas isto não tem a ver com celebrações da Páscoa de um lado e a evocação da data política mais importante do país do outro lado. Nem sequer sobre defesa da liberdade e da democracia.

Estávamos mal se a solidez e saúde do nosso regime estivesse dependente da forma como se celebra, num determinado ano, o dia que lhe abriu caminho. Vamos ser todos um pouco mais exigentes e inteligentes nos argumentos e mais pragmáticos nas análises.

Claro que o 25 de Abril pode e deve ser assinalado na Assembleia da República de forma solene, como sempre acontece. Não há nenhum motivo para que isso não aconteça. A questão não é se deve ou não deve acontecer mas sim na forma como pode e deve ser feito no contexto extraordinário que vivemos.
Se ninguém se opõe ao princípio da celebração nem ninguém defende que a cerimónia seja, na sua dimensão, idêntica à dos anos anteriores, então o que está em causa é a quantidade de pessoas que estarão no Parlamento no próximo sábado.

As 130 pessoas previstas – entre deputados e convidados – são demasiadas e passam a mensagem errada aos cidadãos ou não? Metade seria mais adequado? E porque não 46, simbolicamente a idade do 25 de Abril? E se fossem só 15?

Já há pelo menos duas petições públicas sobre o assunto, uma delas encabeçada pelo inevitável Manuel Alegre.

É caricato e até ridículo que se chegue a esta discussão com o tremendismo e o rasgar de vestes que se vai vendo por aí. Como quase sempre, o método é determinante e foi ele que nos trouxe a este debate a cujo desfecho parece hipotecada a liberdade e a democracia.

Primeiro, o formato da cerimónia devia ter sido acertado com as autoridades de saúde antes de ser decidido. É a Direcção-Geral de Saúde que, desde o início, tem definido as regras impostas aos cidadãos o que pode e não pode ser feito nas mais variadas circunstâncias. Adiar ou cancelar todos os eventos que impliquem, ou possam implicar, a concentração de mais de 100 pessoas e limitar a 10 pessoas as que podem assistir a um funeral são apenas algumas dessas regras.

Mas o Parlamento não fez nada disso e decidiu a cerimónia sem articulação prévia vinculativa com as autoridades. Este domingo a ministra Marta Temido afirmou: “neste momento estamos a trabalhar com a Assembleia da República e com o MAI [neste caso a propósito do 1º de Maio] para a definição das regras precisas para que possam ocorrer [essas duas celebrações]. Estamos ainda a detalhar os termos precisos, que têm que ser envolvidos com os próprios”.

Mas quais “regras precisas” se os deputados já decidiram quantas pessoas vão lá estar, onde e durante quanto tempo? Não vamos tomar as pessoas por parvas. O que os técnicos da DGS vão fazer é assinar de cruz uma decisão política que o Parlamento já tomou num contexto de Estado de Emergência de saúde pública.

Isto não abona a favor da independência técnica que devem preservar para que a população possa confiar e seguir as suas recomendações.

A alternativa é a DGS desautorizar o Parlamento e obrigar a uma cerimónia com menos participantes. Há coragem de uns e humildade de outros para que isso aconteça?

Isto seria tudo escusado e salvaguardaria a posição do Parlamento se tivesse sido feito “by the book”. Mas a arrogância e condição de excepção que a Assembleia da República gosta de reservar para si vieram à tona mais uma vez.

Basta reparar que os deputados têm violado regularmente as regras que eles próprios definiram para o funcionamento do Parlamento neste período excepcional. Até o próprio Ferro Rodrigues, sempre tão condescendente quando o Parlamento e deputados violam regras e leis, já o assinalou publicamente por duas vezes. Numa delas, Rui Rio até abandonou a sala criticando os deputados da sua bancada que não sabem contar até 18 (o número máximo que deviam estar na bancada do PSD).

Como essa arrogância e dualidade de critérios são habituais é fácil pensar que estamos, mais uma vez, perante um desses casos: os órgãos do Estado escolhem para si o laxismo enquanto fazem exigências duras aos cidadãos. E esta já é, só por si, uma traição às boas práticas democráticas que o 25 de Abril nos permitiu.

Mas há sobretudo nesta forma de decidir e actuar uma enorme falta de empatia com o que se está a passar no país e com os cidadãos.

Não são apenas as cerimónias religiosas que estão em causa, embora elas sejam importantes para muita gente. Nem as regras para funerais ou casamentos.

São os familiares que não se podem ver há quase dois meses em nome da protecção comum.
Não são caprichos. São as dezenas de milhares de desempregados ou o mais de um milhão que está em lay-off com um corte de um terço no ordenado. E todo o custo social e económico que virá a seguir. Estas coisas são uma consequência única e directa das regras de isolamento social que tiveram que ser impostas pelo Estado.

O problema é o sinal errado que pode estar a ser dado e que podia ser evitado com um pouco de bom senso e menos arrogância.

Queremos aligeirar já o confinamento e o isolamento social, correndo os riscos inerentes? Ou ele deve ser mantido com o mesmo rigor nas próximas semanas e o Estado deve estar munido da autoridade moral necessária para continuar a impô-los?

Até para mostrar um alinhamento com o que se está a passar na sociedade, o Parlamento faria um favor a todos mas também a si próprio se mantivesse a celebração do 25 de Abril, como se impõe, mas da forma mais minimalista possível: a presença no hemiciclo do Presidente da República, presidente da Assembleia da República e deputados que vão fazer os seus discursos em representação das suas bancadas e dos eleitores que os elegeram.

Seria inatacável e exigente no cumprimento das boas regras sanitárias, como se pede a um órgão de Estado. O país assiste, como sempre, pela televisão. O simbolismo do momento era muito mais eficaz do que muitos apelos e prestaria uma homenagem mais digna à generalidade dos cidadãos que estão zelosamente a respeitar as regras, pagando um preço pessoal – não viram o Papa sozinho na Praça de São Pedro?

E Abril seria, como sempre, homenageado como merece. O que não merece é estar envolvido nesta discussão surreal que não lhe faz justiça, atenta contra o seu simbolismo e divide quando devia unir em nome de um bem único: a liberdade e a sua celebração.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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