Corpos na Casa de Repouso

Os lares e as casas de repouso são o lugar daqueles que não têm lugar neste mundo e aguardam vaga para o outro mundo.

Com a pandemia fica claro que em Portugal há dois tipos de cemitérios – o cemitério dos vivos e o cemitério dos mortos. Os lares e as casas de repouso são o lugar daqueles que não têm lugar neste mundo e aguardam vaga para o outro mundo. No fundo, são armazéns humanos onde se guardam os despojos de uma vida bem ou mal vivida. Passados os anos produtivos, passado o tempo das contribuições, passada qualquer ideia de futuro, as famílias e o Estado demitem-se de qualquer função, mantendo apenas uma espécie de serviços mínimos para conter o espectáculo da degradação, apaziguar as consciências e esconder a vergonha da nação.

Mas o vírus não tem contemplações cínicas e expõe uma situação precária e intolerável num país que se quer moderno e desenvolvido. A exposição é tremenda no número de mortes, escabrosa na ausência de dignidade, arrepiante na insensibilidade. Os cidadãos seniores são o retrato que nos visita do futuro e deixa na memória, não uma recordação do passado, mas sim a nossa condição no futuro. Neste sentido são retratos daquilo que seremos, uma violenta antítese da selfie.

Logo os mais diligentes virão dizer que o problema de um país envelhecido não é uma condição exclusivamente portuguesa, mas o reflexo de uma Europa desenvolvida. A desinteligência da justificação só serve para aumentar a dimensão do problema e denunciar a omissão da responsabilidade. A pandemia veio expor a toda a extensão da Europa civilizada uma economia informal que trata o problema do aumento da esperança de vida, não como um progresso, não como uma libertação, mas certamente como uma condenação – a infelicidade de sofrer do mal da dependência. Na ausência insalubre do Estado e das famílias, existe uma economia mafiosa que explora os restos humanos como a máfia napolitana controla o tratamento do lixo.

O que se passa na Europa à luz canónica do vírus é um processo generalizado de eugenia democrática, uma forma letal de engenharia social em que as forças produtivas são libertadas para a função de produzir riqueza e comercializar bens. Os detritos da produção passada repousam em aterros e casas de repouso.

Em Portugal, no espaço de um país alternativo sem visitas e sem sonhos, os surtos sobem. O Primeiro-Ministro, do alto da sua arrogância mansa, não quer reconhecer que o país clandestino onde se armazena os dispensáveis num universo paralelo e concentracionário, são também e sobretudo a vergonha e a negação de um discurso social que de social transporta apenas a matriz política. Em Portugal, os lares são ilhas de um arquipélago imenso, desconhecido a perder de vista, em que a incúria do país se esconde por detrás do silêncio e da formalidade burocrática. O que não deixa de ser extraordinário é que a indignação que invadiu Portugal de norte a sul quando dois canis clandestinos arderam por desleixo e mão criminosa foi maior do que qualquer gesto de compaixão para com os mortos anónimos nessas ilhas isoladas. A vida de um cão novo vale mais do que a vida de um homem velho.

A situação dos lares em Portugal tem um estatuto peculiar que oscila entre a indiferença e a desumanidade. O Ministério da Saúde ignora os lares por configurarem uma situação social específica. O Ministério da Solidariedade e da Segurança Social ignora os lares por representarem uma condição específica da saúde pública. Tudo contabilizado no deve e no haver, os lares são uma terra de ninguém ao sabor de aventureiros e gente sem escrúpulos que exploram o vazio para fazerem dinheiro. Não existe essa coisa do reconhecimento de uma humanidade comum, nem se aplica a ideia de uma qualquer função supletiva às funções do Estado, nem mesmo o vínculo precário da solidariedade espontânea entre famílias pertencentes a uma mesma sociedade. A maximização do lucro é a única motivação, uma variante pós-moderna da actividade comercial onde se troca dinheiro pela preservação precária e temporária de um ser humano sem valor produtivo.

À imagem da Casa do Artista, imagino uma Casa do Político. A Casa do Político só pode ser o autêntico lugar da história, um magnífico retiro onde os grandes vultos da nação aguardam a transferência para o Panteão. Imagine-se um Ministério da Memória com todos os recursos financeiros, sociais, médicos, recreativos, onde o fascínio de aprender com os grandes homens só pode contribuir para o progresso do país. Viajar pelos corredores pristinos é percorrer os passos perdidos da nação, corredores que comunicam com portas onde os velhos políticos moribundos se sacrificam para que os novos políticos em ascensão possam despontar para o futuro.

Nesta Casa do Político gera-se uma grande diversidade de sintomas mórbidos – uma abominável lista de espera; políticos excluídos por exibirem as cores políticas erradas; políticos esquecidos por escreverem prosa em tempos de lírica; políticos caídos em desgraça; políticos desgraçados com boas relações na máquina administrativa; políticos incompetentes com quartos especiais e com varandas abertas sobre a respectiva incompetência. No quarto do político que colocou Portugal entre os dez países mais ricos da Europa não está ninguém, apenas a figura mumificada do político por quem todos esperaram e continuam à espera. A Casa do Político é um Museu de Cera.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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