Costa e a sombra de Sócrates

Portugal parece viver no tempo do pós-delírio alcoólico e descobre com espanto que, embora todos possam ser Primeiros-Ministros, nem todos devem ser Primeiros-Ministros. Uma lição para o futuro.

O nervosismo e a perplexidade dominam a República. Os deputados agitam-se na exigência de novas leis, os juízes gesticulam e discutem entre si o direito bizantino, a ética republicana afoga-se com a água pelos joelhos, vulgo “pântano”, e os Portugueses continuam na sua persistente e incómoda rotina. A ética da República tem duas faces e tem vida dupla – de dia o serviço público, de noite estrela na dança de varão.

O que não deixa de impressionar é o silêncio do Primeiro-Ministro e a incontinência verbal de Sócrates. E um ponto crucial que une os dois homens numa espécie de Complexo de Édipo em câmara lenta. A mãe do Primeiro-Ministro escreve artigos de jornal sobre o caso Sócrates e o Império do Ódio. O cofre da mãe de Sócrates guarda o Segredo de uma Fortuna. As elites políticas portuguesas não têm voz própria, não sabem assumir a responsabilidade das palavras, dos actos, dos silêncios, para se refugiarem no manto fictício de uma infância perdida e negarem a responsabilidade que cabe a cada um dos envolvidos. É a velha história de quem queria ser astronauta, mas a mãe não deixou. Tudo isto é simplesmente ridículo e a medida exacta da qualidade das elites democráticas.

O silêncio do PS ao longo de todo o processo Sócrates tem sido de um monumental cinismo e de uma olímpica hipocrisia. Claro, “à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política”, é uma declaração inócua de alguém comprometido politicamente e que pede uma máscara constitucional de conveniência. Mas o silêncio não contribui para a salubridade da Nação, uma vez que o que está em causa é que Sócrates chega ao poder com o PS e o PS domina com maioria absoluta a vida política com Sócrates. Politicamente pertencem ao mesmo movimento, representam o mesmo projecto político, a influência e o poder do cargo de Primeiro-Ministro é objecto de “operações comerciais” sem o devido escrutínio do PS. Não se percebe quem usou quem, quem terá sido o traidor original, percebendo-se no entanto que houve vantagens mútuas certamente. A ostentação de Sócrates acaba por rebentar com estrondo no rosto da República.

O processo de Sócrates também é o processo do PS e logo o processo do Regime. Ao eliminar Sócrates da sua história, num reflexo revisionista e estalinista, o PS pensa que recupera a superioridade política do Partido Fundador do Regime, julga que afasta as cumplicidades, pensa que afirma a sanidade política e declara a insanidade moral do Primeiro-Ministro Sócrates, puro e íntegro enquanto militante socialista, ambicioso aventureiro enquanto cidadão. Os Portugueses são os idiotas funcionais que votam PS e têm no sorteio a sorte de Sócrates. Há vilões que não nasceram para gangsters e vítimas que não conseguem convencer um santo no altar.

Convém sublinhar que Sócrates não se sente culpado de crime algum. Para além da “fortuna familiar”, o antigo Primeiro-Ministro representa a visão dos novos-ricos da Democracia, uma vez que esta resulta da sua iniciativa privada e reflecte a ascendência do mérito, do risco, do sucesso. Aliás, Sócrates não ostenta carros de luxo em vermelho néon, mas casas em Paris e Lisboa em bairros de qualidade e por tradição associados à alta burguesia. Sócrates não “ostenta riqueza”, mas exibe a “ostentação do gosto”, daí estar transformado no foco da inveja e do ódio, da inveja dos ricos e do ódio dos pobres. O que Sócrates não parece perceber é que a sua figura se transforma a cada hora num carácter politicamente tóxico. E tóxico porque Portugal já passou a barreira da aprovação e o obstáculo da adoração, simplesmente porque Sócrates passeia no debate público a transparência de um carácter – megalómano, egocêntrico, acossado, vingativo e com o infinito sentido da sua própria superioridade. Na República de Sócrates, ele é o eterno Primeiro-Ministro a quem toda a gente deve tudo para além de tudo.

Na observação da crise política a tocar a crise de Regime, ocorre-me uma peça escrita por Scott Fitzgerald intitulada “O Vegetal”. No argumento original, um cidadão destituído de talento e de qualidades embriaga-se em pleno período de vigência da Lei Seca e, no seu delírio alcoólico, julga ser o Presidente da América. Na sua Administração imaginária estão todos os amigos e toda a família, sucede-se toda uma sequência de decisões políticas inconcebíveis, inimagináveis, absurdas, incompetentes, que levam ao descrédito da Nação, a uma quase situação de Guerra, ao deslaçar de toda a fábrica social, ao predomínio da desconfiança e ao domínio da confiança pessoal. No zénite do delírio alcoólico acontece uma Banca Rota, negócios privados, suspeitas públicas, para tudo terminar sem dignidade ou glória com a destituição do Presidente.

Embora a situação seja ficcional, existe uma certa semelhança com a actual crise de Regime que alguns vislumbram na moral da República. A semelhança pode ser extraída do ideal democrático associado a uma moral política, sobretudo na lógica republicana de que todos os cidadãos podem ser Primeiros-Ministros. Portugal parece viver no tempo do pós-delírio alcoólico e descobre com espanto que, embora todos possam ser Primeiros-Ministros, nem todos devem ser Primeiros-Ministros. Uma lição para o futuro.

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