Covid-19 e os dilemas das políticas de saúde

  • João Moreira Rato
  • 12 Janeiro 2021

Não existem fórmulas fechadas para lidar com esta situação de saúde pública e as autoridades devem procurar as soluções que melhor se adaptam às especificidades de cada sociedade,

Quando em 22 de março de 2020, o Conselho de Ministros decretou o recolher obrigatório, fiquei, como quase todos, circunscrito a uma existência caseira dependente do telefone e de plataformas digitais para interagir com o mundo. Esta alteração de modo de vida ocorreu em simultâneo em todo o globo, facilitando, paradoxalmente, o desenvolvimento e fortalecimento de algumas redes de contacto internacional. Muitas destas conversas tendiam a convergir para o tema da pandemia, sua evolução, consequências e quais a políticas públicas necessárias para lidar com os seus diferentes aspetos, desde a saúde pública atá à economia. Fechados em casa, com um sentimento de impotência, tendíamos a tentar dar um sentido prático a possíveis soluções para o que estava a acontecer.

Um destes meus companheiros de conversas ao longo dos anos, Anand Viswanathan, professor de neurologia na Universidade de Harvard, no seguimento das nossas inquirições, propôs-me participar na elaboração de um artigo pluridisciplinar sobre quais as melhores respostas em termos de políticas de saúde pública para esta crise pandémica.

Os participantes apresentavam um CV bastante variado: Dois são médicos e académicos em neurologia, mas com alguma formação em epidemiologia e saúde publica, uma médica especialista em doenças infecciosas com experiência de lidar com a crise da Ébola, a trabalhar nas Emergências do hospital Melbourne, um CEO de uma plataforma de saúde à distância a trabalhar para o Governo Indiano, e um economista.

Sinal dos tempos, a colaboração entre nós foi remota, necessitando de alguma coordenação, já que havia quem ligasse de Calgary no Canadá, o Anand de Boston, eu de Portugal, o Venu da India e a Amanda da Austrália. Cada contribuição era adicionada ao ritmo dos diferentes fusos horários. O artigo acabou por ser publicado na Frontiers in Public Health.

Na procura de soluções para esta crise global, afectando várias regiões do globo e com consequências sobre a saúde pública, mas também sobre o entorno económico e social, reunimos autores de diferentes países, formações, origens e ocupações. Talvez tenha sido esta diversidade que nos levou rapidamente à conclusão que não existia uma receita única a aplicar de forma indiferenciada aos diferentes países. Que as políticas se deveriam adaptar aos diferentes contextos demográficos, socioeconómicos e culturais, e sistemas de saúde de cada país.

No caso da pandemia, existe uma justificação clara para a intervenção do Estado, já que a agregação dos comportamentos individuais tende a não nos levar ao ponto ótimo, cada individuo não leva, em geral, em consideração o impacto que as suas ações terão em toda a cadeia de contágio potencial. Para se conseguir um melhor resultado social, o Estado desempenha um papel na contenção de interações sociais de forma a controlar a evolução da pandemia.

No início da pandemia, em março de 2020, os argumentos favoráveis a um confinamento mais estrito assentavam nas imagens chocantes do sistema de saúde Italiano em colapso. Impunha-se a convicção que o confinamento era essencial para garantir que os hospitais tivessem os meios em equipamento, camas e pessoal para tratar os doentes devidamente. Para tal seria necessário confinar de forma a “achatar” a curva de contágio. Entretanto, podia aproveitar-se o tempo ganho com estas medidas para comprar ventiladores, instalar novas camas e treinar técnicos de saúde.

O confinamento também ajudaria a mitigar riscos inaceitáveis para os profissionais de saúde e para os mais idosos e com morbilidades. A força de cada um destes argumentos vai depender de cada país. Uns estão mais bem equipados do que outros à partida. Na Índia a percentagem da população acima dos 65 anos é de 6.2% enquanto em Itália é de 22.8%. A percentagem da população com morbilidades é maior nos países mais pobres do que nos países mais desenvolvidos. Estas são diferenças a levar em conta pelas autoridades de cada país.

Por outro lado, é evidente que o confinamento tem consequências socioeconómicas e humanitárias adversas. Como dizemos no texto, “o distanciamento social é um privilégio económico tremendo”. O confinamento é mais fácil de gerir numa casa espaçosa numa cidade do norte da Europa do que numa barraca de um bairro da lata em Bombaim. Quando impõe um confinamento, também é importante que o Estado tenha condições para complementar o rendimento familiar de um agregado sem condições para trabalhar. Este pode não ser o caso em muitas economias em desenvolvimento. Por exemplo para os trabalhadores migrantes na Índia, um estudo mostrou que 42% já não tinha condições alimentares mínimas quando o período de confinamento ainda ia a meio.

Sem qualquer apoio do Estado, os níveis de pobreza aumentam e o número de mortes não atribuíveis ao Covid-19 também. O tempo de confinamento também influi sobre a mortalidade de outra forma: Falta de atendimento, de diagnóstico e tratamento de outras doenças.

A escolha entre políticas públicas terá de considerar um contexto em que para proteger uns terá de se por outras camadas da população em risco. Além dos custos económicos óbvios do confinamento. À medida que o tempo passa, mais empresas terão de fechar definitivamente, destruindo capital e postos de trabalho e dificultando a recuperação quando se restabelecerem os níveis de interação social anteriores.

Quando consideramos os prós e contras das medidas mais extremas de confinamento, somos levados a considerar soluções intermédias. Uma delas, caracterizada como “the hammer and the dance”, alterna períodos de forte limitação às interações (confinamento) e períodos em que estas limitações são aliviadas, isto em resposta a diminuições no índice de transmissão. O problema é que não é fácil gerir o ritmo destes períodos de forma a evitar que a situação se descontrole ao nível do contágio durante os períodos de relaxamento de medidas. O ‘timing’ e a duração de medidas são difíceis de otimizar.

As medidas mais consensuais consistem na diferenciação entre a população suscetível de ser infetada, a já infetada e a recuperada. Para que funcione, seria necessário testar e rastrear de forma eficaz e consistente. Os indivíduos infetados teriam de ser identificados e rapidamente isolados, e os recuperados poderiam operar já sem limitações.

Estas soluções que foram empregues com bastante sucesso nos países asiáticos não foram, estranhamente, replicadas na Europa Ocidental e nos Estados Unidos da América. Já há muitos meses que em Portugal não se conseguem identificar a maior parte das origens de infeção. E reabrir a sociedade, assim às escuras, aumenta o risco de cenários infecciosos mais catastróficos como foi o caso nalguns estados dos Estados Unidos durante o verão.

Em conclusão, não parece existir uma solução única milagrosa para esta crise pandémica. Quando as autoridades procuram “achatar” as curvas de infeção acabam por ter consequências noutras vidas que não estariam necessariamente em risco por causa do Covid. Cada alternativa tem os seus custos, não só em termos de vidas, mas também socioeconómicos e humanitários. Estes custos dependem de fatores sociais, culturais económicos e políticos que são específicos a cada país.

Uma colaboração entre vários profissionais com diferentes especialidades, provenientes de várias regiões do globo e de origens diversas, chegou rapidamente à conclusão que não existem fórmulas fechadas para lidar com esta situação de saúde pública e que as autoridades devem procurar as soluções que melhor se adaptam às especificidades de cada sociedade, procurando mitigar as consequências colaterais implícitas nas suas escolhas.

  • João Moreira Rato

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