Covid Ocidental

O Governo passou um ano a contemplar o vazio, de tal modo que hoje nos quer fazer acreditar que ainda é manhã na pandemia, quando na verdade é a noite que professa.

Não deixa de ser absurdo que quando tantos portugueses morrem querendo viver, a Assembleia da República aprova uma lei que confere aos portugueses o direito de morrer não querendo viver. Quando o País atinge os números estratosféricos e planetários de mortes covid, o espanto e a insensibilidade obtusa do Legislador revela a substância de duas personalidades, uma versão periférica e tosca de um Senhor Hyde que habita um Doutor Jekyll. É a impenetrável lógica das vacinas e dos venenos que afronta a lógica de um Legislador que, através da medicina, pretende salvar parte do Mundo e condenar parte do Mundo, assumindo o desembaraço associado à ignorância e à decência. Tudo tem um tempo em política e este é o tempo do Doutor Jekyll.

Quando o Presidente da República faz um apelo ao País de que é necessário agir para salvar vidas, o Legislador resolve praticar uma espécie de realismo mágico, uma forma de desenvolvimento político que exprime uma genuína consciência de Terceiro Mundo. É a tirania de um progresso que ninguém entende, sobretudo quando a banda sonora do País são os avisos electrónicos das Unidades de Cuidados Intensivos. Mas que importa o concerto das núpcias da morte quando os portugueses passam a ter o direito a uma nova morte com outra dignidade e medicamente assistida. São as coisas impossíveis que acontecem à porta das Urgências que revelam os dias de solidão que asfixiam os portugueses até ao destino de uma crónica que assinala mais uma morte anunciada.

Depois são as vacinas que ninguém sabe, ninguém controla, ninguém conhece. O uso vergonhoso das vacinas é o reflexo do velho expediente nacional, o reflexo sobretudo de uma sociedade meia-feita ou meia-desfeita, no qual os velhos hábitos se confrontam com as novas regras e no fim ganham sempre as pequenas corrupções públicas que submergem as angústias privadas. A deterioração da realidade em Portugal, a hiperbólica crise de saúde pública que atravessa o País, é tanto política como económica, tanto moral como cultural. A verdade oficial tem sido descontrolada pela incompetência e pela indiferença, onde a única verdadeira verdade é que continuam a mentir. E no parque de estacionamento de um Hospital os contentores frigoríficos guardam os despojos do covid com vista para o Tejo.

O Governo passou um ano a contemplar o vazio, de tal modo que hoje nos quer fazer acreditar que ainda é manhã na pandemia, quando na verdade é a noite que professa e o Executivo exige que os portugueses fiquem no exterior das varandas e iluminem as ruas desertas segurando cartolinas com o desenho de um Sol. Séculos de pobreza e de poder depositaram espessas camadas de mentiras que a pandemia vem desafiar à superfície de um País devastado.

A ministra da Saúde, desconsolada e descontrolada, vem dizer que criticar o Governo é “crime”, acrescentando ao enredo o clássico “com as mortes não se faz política”. Claro que os portugueses dispensam as lições de moral de uma ministra que não acredita que em política o impossível acontece constantemente – o impossível de um oceano covid que se abate sobre Portugal. Não é com a indignação dos discursos dramáticos que se evita a “medicina de catástrofe” praticada nos Hospitais. Em democracia ficar calado é ficar com o ónus da cumplicidade; em democracia ficar calado é aceitar a fatalidade da incompetência política; em democracia ficar calado é representar a omissão de uma missão cívica – a missão de falar em nome de uma comunidade de destino que é a maior prova de vida de um País.

Mas de volta às vacinas, essa miragem fantástica da nossa idade. Com o silêncio típico de um País pequeno e menor, Portugal recebe cerca de metade do número de doses contratualizadas, anunciadas aos portugueses, contabilizadas num Plano Nacional de Vacinação. Portugal tem a Presidência do Conselho Europeu e não se vê um gesto político, uma palavra de pressão, uma declaração de peso na balança do poder na Europa. Esperamos entre o Cais das Colunas e o voo das gaivotas. Sem pruridos ideológicos, Portugal devia introduzir no debate europeu a ideia de que as vacinas podem ser contempladas pela lógica de uma “nova economia de guerra”.

A escassez de vacinas no mercado aponta para o desencontro entre a procura e a oferta, revelando uma trágica e lamentável falha nos mecanismos de distribuição próprios de uma economia liberal. Nesta lógica, numa Europa e num Mundo em que o Intervencionismo de Estado está de volta, perante o evento excepcional da pandemia, talvez seja necessário um novo protagonismo da União Europeia na condução da economia política da vacina, assegurando o controlo da produção e a garantia da distribuição, medidas económicas extraordinárias para amenizar os efeitos prejudiciais de uma situação insustentável na saúde pública e na economia.

Quanto à vacinação em Portugal, pois que se crie uma rede covid a toda à superfície do território nacional. Que se use o vernáculo polidesportivo, mas sobretudo que se abram as Igreja e as Catedrais, os Museus e os Monumentos, e que os portugueses sejam vacinados rodeados pela História, pela Identidade, pela Arte, tudo representações de um Passado que se abre a uma nova ideia de Futuro.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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