Crer para Ver

Os nossos vários vieses cognitivos não se podem eliminar na sua totalidade. Mas era bom que as políticas públicas tentassem escapar-lhes tanto quanto possível.

Sou seguidora da página facebookiana “Nós nos Outros”. Sob o mote «Nas histórias dos outros podemos encontrar o melhor de nós próprios», Maria Helena da Bernarda, a autora, traz-nos pequenas histórias reais, contadas na primeira pessoa, de pessoas comuns e desconhecidas. Eventualmente, tornar-se-ão um pouco menos anónimas, já que cada história é acompanhada de uma fotografia de quem a narra.

Há uns dias, a história era da própria autora. No “Adivinhe quem vem cozinhar”, contou-nos que tinha ido experimentar um novo restaurante do seu bairro. A fotografia era a do chef, António Xavier, filho de António Lobo Xavier. Mas Maria Helena da Bernarda não deu o seu nome, limitou-se a referir que o pai do rapaz era “um ilustre advogado, político e comentador televisivo“. Nos comentários, havia gente certa de que António Xavier era filho de Luís Marques Mendes, tais as parecenças físicas. Muito engraçado!

Isto é o que se chama viés de confirmação, ou seja, um viés cognitivo caracterizado pela tendência para pesquisar, interpretar ou lembrar de informações de modo a confirmar crenças ou hipóteses iniciais. Lendo a descrição do pai, foi o nome do comentador dominical que veio à cabeça, não se lembraram do programa “O Princípio da Incerteza”. A partir daí, os olhos do jovem chef fizeram lembrar os de Marques Mendes.

Imagino que estas convicções tenham sido apenas motivo de riso para o casal Lobo Xavier, sem gerarem qualquer problema conjugal. Noutros casos, porém, podem ter impactos mais sérios. Estou a pensar, por exemplo, no alojamento local. Se alguém estiver convencido de que um estabelecimento de alojamento local é uma fonte de desassossego, é normal que comece a ouvir barulho no prédio assim que um dos vizinhos afixe a placa de acrílico a dizer “AL”.

Obviamente, algumas destas unidades de hospedagem podem mesmo ser um foco de problemas (como, de resto, pode ser um qualquer morador). Era por isso que a legislação já previa o seu encerramento por iniciativa da maioria da assembleia de condóminos, quando houvesse a prática reiterada e comprovada de actos que afectassem o descanso dos condóminos, causassem incómodo ou perturbassem a normal utilização do prédio.

Com o pacote Mais Habitação, esta norma foi alterada. É verdade que se passou a exigir dois terços dos votos para mandar fechar um alojamento local, mas em contrapartida essa decisão deixou de ter de se basear em factos provados. Agora, um condomínio pode acabar com a actividade de alojamento local porque sim, porque lhe apetece, porque pode; ou porque, mesmo estando todos de boa-fé, o viés de confirmação se faz sentir. Afinal, António Xavier só podia ser filho de Marques Mendes, aquela cara não enganava.

Naturalmente, os nossos vários vieses cognitivos não se podem eliminar na sua totalidade. Mas era bom que as políticas públicas tentassem escapar-lhes tanto quanto possível, em vez de se basearem neles e de os reforçarem.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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