Culpadas de violação

Ninguém pode ver a sua proteção perante a lei diminuída em função das suas escolhas pessoais. Seja mulher ou homem.

Enquanto o mundo se concentrava nas eleições americanas veio a público o caso de uma jovem brasileira que viu o seu violador libertado por ter sido um “estupro culposo”, ou seja, segundo o juiz, o violador violou, mas sem intenção de violar (?). Também surgiu um vídeo do julgamento em que o advogado de defesa mostrava fotos sensuais que a jovem teria colocado no Instagram como prova de que “estaria a pedi-las”. O interrogatório foi tão agressivo que alguém que não soubesse pensaria que era ela a acusada de ter violado o violador.

Uma das principais funções da lei deveria ser proteger os mais frágeis, seja essa fragilidade permanente ou temporária. A fragilidade de quem se encontra diminuído na sua capacidade de decisão (mesmo tendo-se colocado nessa situação por escolha própria) não deveria ser uma atenuante para quem se aproveita dela. Quando muito, deveria ser o oposto.

O hábito de desculpabilizar violações com as opções individuais das mulheres, fazendo com que elas partilhem a culpa, não é um exclusivo do Brasil. Em Portugal e Espanha houve casos recentes em que os violadores viram a sua pena aliviada porque as mulheres se vestiam ou comportavam de determinada forma, ou tinham consumido certas substâncias. Tudo isto é uma herança de uma certa forma de pensar segundo a qual as mulheres têm uma obrigação perante a sociedade de se protegerem e não instigarem a líbido masculina que, por sua vez, desculpa o comportamento dos homens, mesmo o criminal. Demorará gerações a mudar essa forma de pensar, mas a justiça tinha obrigação de estar à frente.

Toda a gente cai nesta armadilha retórica, mesmo os movimentos mais bem-intencionados. Há uns anos a propósito de umas declarações de um responsável canadiano, alguns movimentos feministas vieram defender o argumento de que a mulher não tinha culpa de violação porque a roupa não influenciava a probabilidade de ser violada. Aquele “porque” está a mais no argumento porque a mulher não tem, nunca, culpa de ser violada. A ausência de culpa da mulher não é condicional à roupa ter influência ou não na probabilidade da violação (ironicamente, um estudo sobre assédio no local de trabalho indicou que o vestuário tinha influência na probabilidade de ser vítima, mas ao contrário, vestuário “mais provocador” intimidava os potenciais assediadores).

Mesmo se a forma de vestir aumentasse a probabilidade de alguém ser vítima de violação, a culpa continuaria a ser exclusivamente do violador. O mesmo se aplica ao consumo de álcool, drogas ou outro comportamento que só diz respeito à pessoa. Estar a condicionar a culpa da mulher a um comportamento afectar ou não a probabilidade de ser violado é abrir a discussão para que outros comportamentos que afectem essa probabilidade possam desculpabilizar o violador. A mulher não tem culpa da violação em circunstância alguma (ponto). Os comportamentos e escolhas individuais das pessoas (mulheres ou homens) apenas a elas dizem respeito e não devem nunca servir como desculpa para perda de proteção perante a lei.

Ninguém desculparia uma pessoa que assassinasse alguém com tendência suicidas ou espancasse um masoquista contra a sua vontade. Da mesma forma, uma mulher pode ter sexo com 10 homens numa noite que se um 11º a violar, o violador continua a ter o mesmo grau de culpa, tal como se tivesse violado uma carmelita descalça virgem. O comportamento da mulher antes ou depois de uma violação não deveria desculpabilizar de nenhuma forma o violador.

Como liberal não posso admitir que escolhas livres e individuais que só dizem respeito à pessoa que as toma diminuam de alguma forma a sua protecção perante a lei ou desculpabilizem aqueles que violem os seus direitos fundamentais. Ninguém deveria ver a sua proteção perante a lei diminuída por escolhas tão íntimas e pessoais como aquilo que bebe, fuma, veste ou as fotografias que publica.

Numa altura em que se fala tanto de revisões constitucionais talvez fosse bom, para evitar certas sentenças judiciais no futuro, tornar algo claro: ninguém pode ver a sua proteção perante a lei diminuída em função das suas escolhas pessoais. Seja mulher ou homem.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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