Democracia em Tribunal

No Portugal contemporâneo, a Democracia está em conflito com a Justiça. Cansados e traídos pela fraqueza das instituições resta aos portugueses percorrer a grande via que é a Avenida da Liberdade.

Parece que ninguém se importa. Para além da demora na Justiça, para além das diligências dilatórias, para além do relato diário dos incidentes em estilo sensacionalista, nada preocupa o país quando um antigo Primeiro-Ministro eleito em democracia se senta no banco dos réus com uma acusação grave e pesada. Na pessoa de Sócrates senta-se no tribunal todo um regime e a ética da República. Não é Sócrates que está a ser julgado, mas a democracia na sua ascensão e queda.

A antiga jóia do novo socialismo e da modernização de Portugal é hoje uma personagem trágica que é a face visível de uma democracia invisível. Sócrates exibe a impunidade dos homens providenciais, o carisma do excesso e da ambição, a fragilidade de uma história de encantar, em que acredita profundamente, e em que acredita que Portugal pode acreditar. O templo da capital política em julgamento exibe o resultado de uma natureza instantânea – Ascender socialmente, enriquecer rapidamente, garantir o establishment eternamente. O país representa o cenário da última opção adiada.

No corredor do tribunal acumulam-se centenas de testemunhas, muito do que há de melhor na política e na economia portuguesas, muito do que há de pior na política e na economia portuguesas. A boa sociedade portuguesa, o dinheiro velho, as velhas cumplicidades, incobrável na sua irresponsabilidade, convive com o arrivismo provinciano sem talento tudo para produzir dinheiro novo, as novas cumplicidades, incobrável na sua irresponsabilidade. Em ditadura ou em democracia a mentalidade da nação não muda e Portugal prolonga a tristeza de um sonho sempre adiado.

Sócrates é hoje um homem só. Mas será que Sócrates esteve só no seu consulado político? Culpado ou inocente, o que é absolutamente fantástico é que um único homem tenha conseguido utilizar, instrumentalizar, manipular, todos os mecanismos da República em proveito próprio e a despropósito dos portugueses sem que ninguém tenha sequer suspeitado ou sonhado com as consequências. Culpado ou inocente, o que é absolutamente fantástico é que um único homem não tenha feito nada para além do seu dever oficial de Primeiro-Ministro e tenha acabado a despropósito no banco de um tribunal ao som do silêncio de todos aqueles que foram politicamente próximos.

Nenhuma das hipóteses faz sentido enquanto as duas hipóteses fizerem sentido. A democracia e o mundo secreto da democracia acabam por exibir uma complexidade feita de muitas direcções. Nesta circunstância, Sócrates a personagem não coincide com Sócrates o político, pois estamos num teatro de máscaras, cujo mundo sombrio dos fantasmas e dos negócios, se transformam na metáfora de um país economicamente corrupto e politicamente decadente. A perplexidade permanece como símbolo da cegueira democrática – O mundo redondo das ambições de Sócrates está em conflito com o mundo plano do poder de Sócrates.

Depois há o silêncio devastador do PS. O silêncio de uma reflexão que não foi feita em tempo útil e que não será feita na inutilidade do tempo presente. Sócrates nasce e prospera politicamente no PS, representa uma parte da história do partido com a obtenção de uma maioria absoluta, tal como representa a figura de um Secretário-Geral em prisão preventiva. Entre São Bento e o estabelecimento prisional vai a distância do poder e a desgraça da perdição. Politicamente o PS não diz nada. O PS ao não dizer nada contribui para a teia de cumplicidades, interesses, ambições, expedientes, que degradam a democracia ao nível de um esquema exemplar que garante a obscuridade de uma transparência invisível. Falta coragem, falta moral, falta política no PS. A democracia exige o preço do escrutínio. A cumplicidade exige o preço da negação. O PS está em negação há dez anos. Portugal não é dado a reflexões, prefere a tranquilidade das repetições.

A Justiça está obviamente sobre uma enorme pressão. Feito o julgamento na opinião pública com o réu condenado e sem recurso, se Sócrates é ilibado é o descrédito, se Sócrates é condenado é o descrédito. A Justiça parece não compreender que a acção dos tribunais depende do mundo, depende do espírito do tempo, depende do timing do julgamento. As advertências de uma juíza no primeiro dia de julgamento, em vez de sublinhar a autoridade e promover a isenção, apenas revelam uma incontornável fraqueza – A magistrada sente a insegurança e receia o peso da influência. A inocência de Sócrates representa a conspiração da Justiça. A condenação de Sócrates representa o populismo da Justiça. E agora?

A República enfrenta um dilema clássico – Sem Democracia não existe Justiça. Sem Justiça não existe Democracia. No Portugal contemporâneo, a Democracia está em conflito com a Justiça. Cansados e traídos pela fraqueza das instituições resta aos portugueses percorrer a grande via que é a Avenida da Liberdade.

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