
Demolições no Parlamento
A cidade-caixote é uma realidade social que sempre esteve à vista de todos. Apenas o olhar político escolheu ignorar os territórios da devastação
O Estado da Nação representa a demolição de uma certa forma de fazer política. O habitual modo parlamentar desaparece porque o mundo muda e Portugal não consegue deixar de ser arrastado pelas tendências internacionais. Não que o Parlamento quando discute o estado do Estado esteja preocupado ou consciente ou informado com o rumo da política e com o “ar do tempo”. O país é um país fechado sobre si próprio e viciado nas imagens repetidas no espelho. Como um cão que apenas reconhece a sua imagem no espelho.
A maior revolução depois do 25 de Abril chama-se Chega. Com o Chega surge em Portugal a direita radical marxista que a esquerda radical pós-marxista não entende nem sabe como responder. A democracia portuguesa não sabe como incorporar o Chega no sistema corrente e vigente – chamam-lhe moderação. Só que moderação é uma piada infantil para os radicais. Sejam os cordões sanitários, seja a diabolização fascista, seja a política do medo, a esquerda está impotente perante um fenómeno que ameaça a viabilidade eleitoral dos fundadores do Regime. Entretanto, o Chega instala-se numa nova versão do “entrismo” e começa a mudar o Regime por dentro. Todos os tempos políticos têm o seu ar do tempo e quem não entende o ar do tempo acaba arrastado pela tempestade ou acaba absorvido por um ciclone político.
As demolições no Parlamento são simbólicas e fazem-se com a dimensão performativa da linguagem política. Para aqueles que duvidam, a palavra em política é acção e ponto final. Observem como o Parlamento está mais caótico, imprevisível, vulgar. O cenário próprio do parlamentarismo do século XIX contrasta com o discurso pós-político do século XXI. É a nova velha linguagem que enche o teatro e não o formalismo conceptual que pertence a outro tempo. A discussão política está entre o Jurássico e o Antropoceno. Afinal a política nunca foi outra coisa senão a violenta luta pela sobrevivência. E a violência está de volta à política. E com a violência o medo.
Veja-se no Estado da Nação os resistentes à esquerda, os desistentes ao centro, os eminentes à direita. O PSD voa como um drone nas correntes ascendentes do Chega e capta o discurso radical na ilusão que anula a dimensão radical do discurso. Portugal está hoje politicamente dominado pela ideia de um país acossado de imigrantes e à beira do colapso identitário. O PSD lidera a governação, mas o Chega domina a situação. O PSD deriva silenciosamente sobre os escombros de um PS que não tem consistência nem inteligência nem consciência políticas calibradas para o ar do tempo. O PS sem poder não é nada, não representa nada, nada a não ser os egos excitados, moralistas e desiludidos de quem se acha com a arrogância de ser dono do Regime. O PS sente-se traído pelos portugueses e politicamente só lhe resta uma espécie de autocomiseração como modo de superioridade e de sobrevivência.
Mas qual é afinal o ar do tempo? A ilusão do consenso sobre as virtudes da democracia e a lógica da moderação e da negociação estão em declínio. O consenso democrático foi substituído pela elevação das grandes fronteiras políticas como modo de afirmação e de identidade política em detrimento de uma planície democrática livre e sem fronteiras. A planície democrática livre e sem fronteiras é a expressão do vazio em política. A elevação das grandes fronteiras políticas marca a possibilidade de um novo horizonte para outras formas de identificação de natureza étnica, de matriz nacionalista, de pendor religioso. No mundo político desenhado pelas fronteiras, o opositor político é uma representação desse território que está para além, que está do lado de fora – Esta é a lógica que estabelece a diferença entre “nós” e os “outros”. Em tais circunstâncias, o opositor político não pode ser concebido como um adversário no mesmo patamar de dignidade, mas como um inimigo que é necessário destruir. Não reconhecem esta lógica nos discursos políticos sobre o Estado da Nação? Não reconhecem este sentimento disseminado na sociedade que desfila anónima pelas ruas e lugares de Portugal?
É um pequeno salto que separa as demolições no Parlamento das demolições de barracas. Alguém imagina barracas no Terreiro do Paço, no Rossio, no Chiado com poetas à varanda? Há qualquer coisa da Luanda de Kapuscinski em 1975 na Lisboa contemporânea – “Toda a gente estava ocupada a construir caixotes. Gradualmente a cidade de pedra perde o seu valor em favor da cidade de madeira. Em lado nenhum do mundo vira cidade semelhante. Mas, depois, a cidade partiu no oceano. Não sei se alguma vez se deu o caso de uma cidade inteira navegando através do oceano, mas foi exactamente o que aconteceu. A cidade partiu em direcção ao mundo, em busca dos seus habitantes”. A cidade-caixote navegando no mar pertencia aos portugueses que fugiam de Angola.
Na ode à Lisboa de madeira, não existe a aventura da navegação. A cidade-caixote é uma realidade social que sempre esteve à vista de todos. Apenas o olhar político escolheu ignorar os territórios da devastação. A cidade-caixote está atolada na doca seca que é Portugal.
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