Depois de Draghi, a internet da moeda

Depois de os Estados terem salvado os bancos da falência e de os Estados terem sido salvos pelos bancos centrais, receio que não haja quem venha a salvar os bancos centrais se tal for necessário.

A política monetária, hoje seguida pelos bancos centrais um pouco por todo o mundo, caracteriza-se, na minha opinião, por estar em modo de fuga para a frente. O caso é especialmente agudo na Europa, onde o Banco Central Europeu (BCE), pela mão de Mario Draghi, acaba de anunciar a sua disponibilidade para mais uma ronda de acomodação monetária. Uma acomodação que, segundo análise contra factual publicada há dias pelo Banco de Portugal, permite hoje à República Portuguesa financiar-se a dez anos a uma taxa de 0,5% (!) em vez de o fazer a taxas de 2% ou mais.

Trata-se de uma evolução notável, que permite ao País a poupança de milhares de milhões de euros em juros sobre a dívida pública – o Presidente Marcelo deveria conceder a Draghi todas as comendas possíveis e imaginárias –, mas não deixa também de representar uma evolução artificial, fabricada pelo BCE, e, de um modo geral, sem paralelo na história financeira mundial.

Ora, no mesmo dia em que Draghi anunciava em Sintra que o BCE poderia regressar à aquisição de activos financeiros, o Facebook e várias empresas de nomeada, não apenas da área tecnológica, mas também do mundo financeiro e dos bens de consumo, anunciavam a criação da Associação Libra e de uma nova cripto divisa.

Numa primeira análise, a novidade do projecto libra, face a outras cripto divisas, reside na existência de um cabaz de activos financeiros subjacentes à divisa e no facto de, ao contrário do que é habitual nestes arranjos, a sua estrutura de funcionamento não assentar numa arquitectura 100% descentralizada. Deste modo, nos primeiros cinco anos do projecto, prevê-se que apenas a Associação Libra, constituída pelos seus membros fundadores (Facebook, Mastercard, PayPal, Visa, eBay, Farfetch, Spotify, Uber, Vodafone, entre outros), poderá cunhar ou amortizar libras (digitais), consoante os seus membros e intermediários autorizados as adquiram ou as vendam, através do depósito ou resgate dos activos subjacentes ao seu funcionamento. As reservas financeiras do sistema libra consistirão em depósitos bancários e títulos soberanos de curto prazo e de elevada liquidez.

O alcance potencial desta cripto divisa parece-me imenso, como aliás sucede com o fenómeno das “altcoins” em geral (sobre isto, sugiro a leitura do meu artigo “O que faz valorizar a bitcoin” de 13/12/2017). A libra é, de resto, uma evolução do fenómeno, mas, desta feita, traduzindo um projecto com uma determinada matriz empresarial e um propósito comercial muitíssimo apurado.

Não é um devaneio libertário do Facebook e companhia, nem a sua difusão dependerá da aquisição comercial de aderentes porque estes tenderão a ser simultaneamente aderentes e promotores. Acima de tudo, esta nova cripto divisa endereçará os problemas fundamentais das principais “altcoins” criadas nos últimos anos: A falta de valor intrínseco, devido à ausência de activos subjacentes, e a dificuldade em estimar uma noção de valor, para além das meras expectativas de adopção das mesmas por parte dos seus utilizadores ou da limitação de cunhagem estabelecida pelos algoritmos.

Os promotores desta nova cripto divisa, para além dos propósitos comerciais envolvidos – i) facilitar as trocas comerciais no mercado digital comum estabelecido entre os seus membros e ii) agarrar as comissões que hoje são cobradas pelos intermediários financeiros –, estarão também a criar o embrião de uma alternativa ao modelo de reservas fraccionárias que serve de âncora ao actual sistema financeiro.

Por outras palavras, ao condicionar a criação de cada libra adicional à constituição de reserva obrigatória correspondente a 100% do valor dos activos subjacentes à divisa (no momento de criação de cada unidade adicional), a estabilidade do seu poder aquisitivo será facilitada. É certo que isto dependerá sempre da composição do cabaz subjacente – e este continuará ligado ao sistema bancário de reservas fraccionárias –, mas a libra não envolverá a alavancagem que potencia as corridas aos bancos nem será determinada pela manipulação dos limites de cunhagem possível noutras “altcoins”.

Iniciativas deste género beneficiarão da tecnologia e do poder de mercado dos seus promotores, mas não só. Elas beneficiarão também dos riscos associados às políticas não-convencionais dos bancos centrais que, entretanto, se tornaram no novo normal.

As “altcoins” são motivadas em larga medida pela descrença no valor do papel moeda (“fiat money”). A crise financeira de 2008, e a crise soberana que em alguns países se lhe seguiu, resultou dos incentivos inerentes ao sistema bancário de reservas fraccionárias, cujo efeito, durante décadas, foi o de estimular a criação monetária e o endividamento galopante de todo o tipo de agentes económicos em todo o mundo. A resposta à crise, envolvendo o reforço da impressão monetária feita a partir do nada (“out of thin air”), constituiu uma fuga para a frente, porquanto a alternativa seria politicamente e socialmente intolerável. Mas é uma fuga para a frente que corre um sério risco de acabar mal.

Vários países beneficiam hoje de juros negativos nas suas emissões de dívida. Até Portugal, afligido há poucos anos pela bancarrota, beneficia de taxas negativas nas maturidades até cinco anos, significando que há quem esteja disponível para pagar ao Tesouro português a fim de que este lhe guarde o dinheiro durante cinco anos! Boa sorte.

Na Alemanha sucede o mesmo para emissões a dez anos. No Japão, na Dinamarca, na Holanda, na Suíça, idem. É, a meu ver, uma loucura que resulta das medidas não convencionais dos bancos centrais, que desvirtuaram por completo a noção de risco financeiro bem como o custo do dinheiro. Uma vez entrados nesta avenida, é dificílimo sair-se dela, porque o devedor é o primeiro beneficiário. Com juros negativos, o incentivo é para aumentar a dívida, não para a diminuir. É bom de mais para ser verdade e sabemos como costuma acabar.

Enfim, a parte verdadeiramente boa da história é que muitas boas empresas se financiam hoje de uma forma que noutras circunstâncias não seria possível. Porém, como sempre sucede quando há euforia, tudo isto resultará também em má alocação de capital e, mais ainda, na ausência de qualquer incentivo à poupança numa altura em que as populações dos países mais endividados estão a envelhecer.

Depois de os Estados terem salvado os bancos comerciais da falência e de os Estados terem sido salvos da ruína pelos bancos centrais, receio que não haja quem venha a salvar os bancos centrais se tal vier a ser necessário. O risco, sobretudo na zona euro, não desapareceu. Ele simplesmente foi empurrado de um lado para o outro, na expectativa de que o tempo o eliminasse. Todavia, numa altura em que o ciclo económico mudou, e a guerra comercial se globaliza, os riscos vão-se amontoando e a margem de erro vai diminuindo.

Para além das tensões geopolíticas, alguns bancos centrais, designadamente o BCE, estão cada vez mais próximos da curva e circulam a alta velocidade. Como travar não será solução, eles continuarão a acelerar até serem forçados a parar, isto é, até que todo o risco, incluindo o especulativo, passe a expressar-se através de juros negativos. Por este caminho, lá chegaremos. A internet da moeda constitui uma bem-vinda concorrência ao “statu quo”, mas, suportada em papel moeda que cada vez mais vence juros negativos, não deixa de ser uma diversificação muito imperfeita. Ainda assim, é melhor do que nada. Sejamos optimistas!

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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