
Do Boris, com amor
Nos próximos meses se verá quem é, por detrás das máscaras, o verdadeiro sr. Boris.
Muitos europeus têm a noção de que o sr. Boris Johnson é uma mistura de Andy Pipkin, a irritante personagem da comédia “Little Britain”, do incompetente Jim Hacker de “Sim, sr. Ministro” e do sr. Benjamin Disraeli. Ou seja, que é um enigmático personagem liofilizado cozinhado por uma Bimby. Talvez não seja.
Nos próximos meses se verá quem é, por detrás das máscaras, o verdadeiro sr. Boris. Se um bolo mármore, se um leite creme. Se é um pajem do sr. Trump ou a reincarnação do sr. Disraeli que, no século XIX, queria juntar ricos e pobres debaixo do guarda-chuva de uma única nação conservadora. Curiosamente a sua filosofia política, seguida hoje pelo sr. Boris, foi burilada num romance escrito pelo sr. Disraeli, “Sybil, or The Two Nations”.
John le Carré, cujo último romance, “Agente em Campo” (edição D. Quixote), pisa o campo minado do Brexit, tem poucas dúvidas sobre as reais intenções do sr. Boris. E não tem quaisquer esperanças sobre a classe política. Numa entrevista à BBC, disse: “Os políticos adoram o caos. Não pensam noutra coisa. Dá-lhes autoridade e dá-lhes poder. Dá-lhes proeminência. Ficam com a ideia de que podem resolver as coisas por ti”. E que, depois do caos, podem recriar a ordem. Mas qual ordem?
O sr. Boris não pode ser dissociado deste livro de John le Carré. Mesmo sem George Smiley por perto, deparamo-nos com o que sempre encontrámos nos seus livros: a traição. Nele, Nat, um veterano dos serviços secretos britânicos, sente que o seu ciclo está a terminar. É chutado para chefe de um serviço inoperante, o Porto de Abrigo, onde todos esperam a reforma. Excepto a jovem Florence, que tem outras ambições. Tal como Ed, muito mais novo que ele e seu parceiro de badminton, que acaba por trocar as voltas a todas as lógicas previsíveis. Nat acaba por se deparar com um plano secreto e sórdido, Jericó, que pretende aumentar o apreço dos americanos pela Grã-Bretanha, enquanto esta mina os seus parceiros europeus.
É esta a missão suicida do Brexit e do sr. Boris: destruir a União Europeia? Tal como Smiley, Nat vive um dilema moral. Não é entre a esquerda e a direita, mas sim entre a vontade individual e a causa por que se luta, entre as pessoas e o patriotismo. Nat choca contra a parede: no mundo da espionagem não há heróis e a linha entre o que está certo e o que está errado é hoje um logro e uma comédia de mau gosto.
A hipocrisia venceu. Quando Nat está defronte do russo Arkady, velho agente duplo, este diz-lhe: “Sabe o que o Trump é? É o encarregado da limpeza da latrina do Putin”. E, falando como russo, não poupa os britânicos: “(Vocês) pegam no nosso dinheiro sujo e lavam-no por nós. Recebem-nos de braços abertos se formos uns grandes bandidos. Vendem-nos metade de Londres”.
Le Carré está irritado. Vê no sr. Boris a face desta fogueira de hipocrisias. E mostra, também, que a estratégia de Bruxelas, de humilhar Londres nas negociações, foi um tiro na própria testa. Agora, com o sr. Boris, a “desglobalização” avança a todo o vapor. “Vergonha”, dirão alguns. Excepto, claro, o sr. Ferro Rodrigues, para quem essa é uma palavra maldita. Se ele se desse ao trabalho de ler o que diziam os deputados durante as sessões parlamentares na Monarquia Constitucional ou na Primeira República, comprava uns auscultadores e passava as sessões a ouvir “heavy metal”. E não incomodava.
De que nos admiramos? O sr. Boris é o fruto de uma velha escola britânica. Em 1967, David Frost e Antony Jay (um dos autores de “Sim, sr. Ministro”) escreviam: “Há muitas definições de inferno, mas para os ingleses a melhor definição é a de que é um lugar onde os alemães são a polícia, os suecos são os comediantes, os italianos são a força de defesa, os franceses tratam das estradas, os belgas são os cantores pop, os espanhóis dirigem os comboios, os turcos cozinham, os irlandeses são os empregados de mesa, os gregos dirigem o governo e a língua comum é o holandês.” A Europa é um horror! Não admira que mantivessem a libra e tivessem votado no sr. Boris. Não se percebe é porque em Bruxelas foi tão difícil perceber o que ia acontecer.
Sugestão da semana
Grande disco, inspirado pelo “Livro Tibetano dos Mortos”, é “Songs From the Bardo”, de Laurie Anderson, do músico tibetano Choegyal e da filha de Patti e de Fred “Sonic” Smith, Jesse Paris. Inspirador.
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