É preciso um novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional?

Qual é a ideia nova para Portugal que justifique a revisão do conceito de defesa nacional? Nas “grandes opções” não há qualquer ideia nova ou original para o país.

A revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) está em discussão no parlamento a partir de uma proposta de “grandes opções” apresentada pelo governo com o objectivo de definir as prioridades nacionais em defesa e segurança, de acordo com o interesse de Portugal.

A revisão é justificada com três argumentos: alterações na distribuição de poder a nível global com consequências na ordem multilateral vigente; o rápido desenvolvimento de tecnologias emergentes e disruptivas, que representam tanto oportunidades como riscos para a segurança e defesa; e os impactos que se verificam por via das alterações climáticas.

A verdade é que nenhum destes factores é novo e todos estavam já considerados no actual CEDN aprovado em 2013, quando as alterações na distribuição de poder a nível global já se faziam sentir com a ascensão da China e de potenciais regionais como Turquia, Irão, Índia, África do Sul ou Brasil, o rápido desenvolvimento de tecnologias emergentes e disruptivas era uma realidade e a referência às alterações climáticas já era “indispensável”.

A revisão do CEDN deveria ser resultado de uma avaliação do actual e de mudanças entretanto ocorridas a nível internacional. A proposta do governo não menciona nenhuma avaliação, nem é disponibilizado publicamente nenhum documento que se lhe refira, pelo que não parece ter sido um factor a considerar na definição das “grandes opções”.

Para além disso, não houve mudanças substanciais no sistema de relações internacionais. A agressividade russa já se tinha feito sentir na Geórgia, Tchetchénia, ou na Ingushétia antes de 2013. A segunda invasão da Ucrânia serviu para “acordar” as sociedades “anestesiadas” da Europa Ocidental (na Oriental há muito que o perigo russo era denunciado), mas a proposta do governo em nada altera a posição de Portugal definida em 2013.

A proposta nem sequer altera as prioridades dos interesses portugueses. O espaço relevante para a segurança de Portugal é o mesmo há muitas décadas – Europa, Atlântico e Mediterrâneo –, no âmbito de três alianças – NATO, UE e CPLP – e da necessidade de cumprir os compromissos assumidos em termos de segurança e defesa e em missões militares na Europa ou África.

A proposta do governo de “Grandes Opções” apresenta estes temas de forma atabalhoada, repetindo a mesma coisa em locais diferentes do texto (e.g. o chavão da inovação está espalhado em vários pontos), parecendo mais uma “colagem” de opiniões informais elencada por um grupo de estudantes do que um trabalho sério sobre valores fundamentais como a independência nacional e a defesa dos interesses de Portugal e da estabilidade internacional.

Os temas abordados na proposta são um rebuscar dos que estão presentes no CEDN em vigor: a economia, a tecnologia e a inovação, o ciberespaço e o espaço, as catástrofes naturais, a navegação segura, os recursos humanos, etc., etc. O que também não muda são as intenções de investimento que há longos anos não saem do papel – 2% do PIB em defesa.

A proposta do governo de “Grandes Opções” apresenta estes temas de forma atabalhoada, repetindo a mesma coisa em locais diferentes do texto (e.g. o chavão da inovação está espalhado em vários pontos), parecendo mais uma “colagem” de opiniões informais elencada por um grupo de estudantes do que um trabalho sério sobre valores fundamentais como a independência nacional e a defesa dos interesses de Portugal e da estabilidade internacional.

Esta abordagem contrasta muito com a de 2013, quando houve a preocupação de definir um CEDN que estivesse fundado numa estratégia nacional credível para o país e capaz de mobilizar os portugueses. Para isso foram discutidos os seus fundamentos e uma visão de conjunto da estratégia de Portugal. Em suma, havia uma ideia para o país e agora não há.

O CEDN de 2013 afirmava sem pruridos os interesses de Portugal: “Afirmar a sua presença no mundo, consolidar a sua inserção numa sólida rede de alianças, defender a afirmação e a credibilidade externa do Estado, valorizar as comunidades portuguesas e contribuir para a promoção da paz e da segurança internacional”.

Uma avaliação possível deste CEDN é que a credibilidade externa de Portugal foi reposta após a irresponsabilidade da pré-bancarrota, contribuindo para uma afirmação limitada, mas real, da posição do nosso país no mundo, para a inserção numa rede de alianças cuja solidez será necessário construir continuadamente e para a promoção da paz e da segurança internacional.

O que falhou nos interesses explicitados no CEDN foi a valorização das comunidades portuguesas, como ficou demonstrado pela anulação de mais de metade dos votos dos emigrantes nas eleições legislativas. A juntar aquela vergonha, a actual proposta do governo menospreza uma questão essencial para os interesses de Portugal, o que é incompreensível.

Para além da indiferença dada a esta questão, qual é a ideia nova para Portugal que justifique a revisão do CEDN? Nas “grandes opções” não há qualquer ideia nova ou original para o país.

A posição de Portugal face à China

Um assunto que deveria motivar uma revisão do CEDN é o aprofundar da mudança do centro do sistema de relações internacionais para o Pacífico. Neste âmbito, o novo CEDN deveria abordar os aspectos relevantes para uma possível alteração da posição qualitativa de Portugal.

Este ponto é muito mais importante do que possa parecer. Para Portugal existem actualmente três alternativas de posicionamento: deixar as opções em aberto, que é a preferida por muitos pois não implica estudar os assuntos nem tomar decisões difíceis; a opção NATO e o seu novo conceito estratégico; a opção UE, com a “Bússola Estratégica” e a Autonomia Estratégica Aberta.

Nas situações em que houver convergência de posições entre a NATO e UE, que esperemos seja a grande maioria, a resposta será a mesma e Portugal continuará a alinhar as suas posições com as que forem definidas pelas duas organizações, frequentemente abdicando de ter um pensamento próprio. Esta foi a prática sistemática das últimas décadas.

Mas nas situações em que as posições da UE e da NATO não convergirem esta opção não é possível. Isso vai ocorrer várias vezes e, provavelmente, será mais frequente com a crescente afirmação do Pacífico como o centro do sistema de relações internacionais e com a tentativa de países europeus (e.g. França) usarem a UE para se afirmarem como potências.

Os pontos de tensão já se verificam actualmente. Por exemplo, no que se refere à crise na Ucrânia e à posição relativamente aos Estados Unidos e ao Reino Unido, os países da UE estão divididos, com o Centro a querer afirmar a sua autonomia num mundo multipolar, e o Leste a alinhar com os países anglo-saxónicos que garantem a sua defesa. Esta tensão vai regressar regularmente, podendo ter o seu auge com as disputas no Pacífico.

A ideia de alargar a NATO ao Pacífico está a ganhar peso e Portugal deveria considerar as várias alternativas para o seu posicionamento futuro, sendo a definição do CEDN a altura ideal para o fazer. Isto faz ainda mais sentido se recordarmos que Portugal teve uma presença histórica de cinco séculos no Extremo Oriente e a presença de interesses chineses em território nacional é cada vez maior.

O novo conceito estratégico da NATO denuncia a ameaça da China, sozinha ou em aliança com a Rússia, para o primado do direito e para a estabilidade internacional, e a sua tentativa de alargar o poder a todo o globo. A sua estratégia expansionista é mais grave no Pacífico, com as tentativas para controlar todo o mar do Sul da China, e Estados Unidos e Reino Unido, em conjunto com nações democráticas aliadas (Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Índia, etc.), estão a desenvolver diversas iniciativas para contrabalançar esta ameaça.

Neste âmbito, a ideia de alargar a NATO ao Pacífico está a ganhar peso e Portugal deveria considerar as várias alternativas para o seu posicionamento futuro, sendo a definição do CEDN a altura ideal para o fazer. Isto faz ainda mais sentido se recordarmos que Portugal teve uma presença histórica de cinco séculos no Extremo Oriente e a presença de interesses chineses em território nacional é cada vez maior.

Infelizmente, o único interesse do actual governo é por uma medíocre mediania. A forma passiva e com o maior desinteresse como António Costa aceitou a quebra, pela China, do acordo com Portugal para que Macau preservasse autonomia e funcionasse como uma democracia é demonstrativo disso mesmo. E se o próprio primeiro-ministro, que beneficiou de um bom ordenado quando esteve em Macau, ignorou o futuro dos habitantes do território, não é agora que tem a cabeça em Bruxelas que se ira interessar por temas do Pacífico. Mas devia, porque é para se preocupar com o interesse nacional que lhe pagamos o salário.

Para Portugal torna-se fundamental preparar uma posição a este respeito, que esteja alinhada com a independência e o interesse nacional, como o CEDN requer. Portugal não pode abdicar da sua responsabilidade e transferi-la para Bruxelas – para a NATO ou para a UE – sem uma validação pelo povo português, como fez em outras áreas para a segunda destas organizações.

Esta é uma questão muito relevante para o nosso país, que não pode ser deixada ao “correr do vento”, como alguns gostariam. Talvez o texto final do novo CEDN a venha a abordar, provando que afinal esta revisão não serviu apenas para cumprir calendário. Veremos.

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