Economia de guerra

Nesta economia política da vida e da morte, a lógica da economia da guerra é uma tempestade de aço que ameaça a Europa.

Os cafés de Viena estão ocupados por expatriados russos. Falam em russo sussurrado com medo e vergonha de serem apontados. Apontados e confundidos com agentes do FSB em missões de estudo na cidade. Nas cafetarias independentes com playlists a debitar uma sequência de clássicos do jazz, os russos são jovens e trabalham como baristas para equilibrar um orçamento em défice permanente. Para fugir ao recrutamento militar e à frente da Ucrânia, os russos aportam na cidade dos espiões em plena Europa Central.

Para fugir à pressão do regime, os russos vagueiam nas ruas e nas praças da cidade e espalham-se por Viena como um Gulag onde se fala de medo e de liberdade. Os russos são arquipélagos de humanidade numa cidade entre dois mundos. Os cafés são barómetros da política, da cultura, do convívio intelectual que é uma espécie de coração da Europa. Recordo os cafés da Viena imperial entre guerras. O café frequentado por Freud, o café preferido de Musil, o café eleito por Karl Kraus. Da Lisboa de Pessoa à Odessa de Isaac Babel, a geografia dos cafés é o percurso de uma ideia e os contornos de uma identidade. Em Moscovo não há cafés antigos ou icónicos. Como alguém já escreveu, “Moscovo é um subúrbio da Ásia”.

No esplendor barroco de uma Viena desenhada sobre as ruas em macadame de outro século, converso distraidamente em português corrente sobre o brilho dourado da cidade e o eco branco das ruas de Lisboa. Subitamente, um desconhecido dirige-se a mim e pergunta-me em inglês: “Qual a sua cidade na Rússia?” A situação é comum. O português parece ter o peculiar ritmo e sonoridade do russo, em particular na articulação dos “erres”. Informo que venho de Portugal e que a língua em que converso é o português. À curiosidade sucede-se o espanto e um sorriso de algum alívio. O desconhecido vienense revela toda a sua surpresa porque nunca tinha ouvido a língua de Saramago falada, embora lhe fosse familiar o imaginário português do escritor traduzido para alemão. As línguas da Europa são uma pluralidade de rios que não se encontram mas que convergem numa conversação silenciosa e complexa preservada na literatura do Velho Continente. O encontro furtuito é interrompido pela buzina de um carro que revela a pressa perdida de um estranho na cidade. O carro tem matrícula russa e a sua tripulação é exclusivamente constituída por jovens. Novos restos do Império perdidos no exílio da Europa.

Em Viena consegue-se respirar a ansiedade das trincheiras na Ucrânia. Não há valsas ou sinfonias capazes de fazer esquecer a frequência monótona da artilharia, a matilha nocturna dos mísseis, o silvo diurno dos drones, que nos trazem as imagens esplendorosas e aéreas da carnificina. O que se sente nesta cidade é uma variante ao “cansaço da História”, a Europa condenada a repetir os erros do passado com as consequências do passado ou a Europa capaz de se reinventar de novo na configuração de um outro futuro. Nas fachadas deslumbrantes de Viena a guerra e a paz convivem como produtos gémeos de uma Europa que não se reduz às instituições de Bruxelas.

A memória do Continente vem à superfície nos estilhaços do mapa da Ucrânia que são a representação de que os grandes ódios não recolheram ao silêncio dos museus. Os ódios étnicos, o nacionalismo chauvinista, o expansionismo regional, a demência política, devolvem à Europa a vulnerabilidade das grandes guerras civis europeias. A questão infecta o meu espírito e perturba a paz artificial de Viena – como poderá a Europa evitar e sobreviver à “desumanidade suicida” que serve de moldura ao sublime dos museus da cidade?

Na Viena que vive da evidência de uma economia da prosperidade, a sombra da economia da guerra ganha o contorno cinemático de um discurso político que se sobrepõe à estética da cidade e ao destino da Europa. A deslocação cultural da Rússia no mundo pós-marxista, mais a nulidade económica mais a autocracia anacrónica, revela uma ambição de retomar um confronto em que a razão de estado e a missão moral são o zénite político de uma nova ordem. No café reparo que um russo enquanto discursa na atmosfera caótica de uma grande capital de uma Europa reconstruída a partir dos escombros e da ruína de outros tempos conversa por SMS com uma pessoa ausente mas presente. Imagino a conversa com alguém retido na Rússia. Contactos, itinerários, estratégias de fuga, novamente uma rede de circulação clandestina para refugiados e dissidentes políticos.

Imagino Viena na Guerra Fria e o café é a fronteira metafórica entre a ideia de liberdade e a ideia de dominação. Nesta economia política da vida e da morte, a lógica da economia da guerra é uma tempestade de aço que ameaça a Europa. Um detalhe no iphone chama a minha atenção e traz-me de volta ao mundo real – a fotografia de Alexei Navalny. A Rússia continua a produzir os seus mártires.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Economia de guerra

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião