
Em mar de piranhas, jacaré nada de costas (VII)
É difícil imaginar a nossa vida sem os smartphones. Dois cientistas afirmam que eles se comportam connosco como o parasita se relaciona com o hóspede. Será assim?
Nelson Rodrigues, um dos grandes cronistas brasileiros, além de jornalista, romancista e dramaturgo, escreveu nos anos sessenta do século passado que a ‘televisão matou a janela’. A frase surgiu numa das suas crónicas no jornal Globo, que, posteriormente foram reunidas num livro com um título que, só por si, merecia outro livro: ‘O Óbvio Ululante’.
Hoje, a frase parece-nos tremendamente injusta, face ao conhecimento e informação que a televisão nos oferece todos os dias. Mas, ela encerrava, no tempo em que foi escrita, o receio pelo desconhecido e uma nostalgia por algo que estava em curso: a troca da janela pela televisão como lugar de observação e imaginação do mundo. Nelson Rodrigues, ele próprio um observador implacável e irónico da sociedade, terá intuído que a era da televisão, apesar dos seus evidentes méritos, poderia significar um maior isolamento das pessoas e que o contacto com os outros e com a rua passaria a ter um novo e poderoso mediador.
Lembrei-me de tudo isto, quando li esta semana no ‘Libération’ uma entrevista com o biólogo Robert Brooks e a filósofa Rachel L. Brown. Permitam-me um brevíssimo parêntesis para expressar o meu regozijo por neste texto já ter citado dois jornais – facto que gostava que lessem como uma homenagem ao jornalismo e à sua importância na formação de uma opinião crítica.
Voltemos, então, a Robert e Rachel, autores de um artigo científico desafiante e que se resume numa ideia: ‘Do ponto de vista da evolução, os smartphones são os parasitas, e nós, os humanos, os hospedeiros.’
Na entrevista, fazem uma analogia entre a relação dos humanos com outras espécies animais e a sua relação com a tecnologia. Na relação com outras espécies, existem situações em que o homem é predador, outras em que se estabelece uma simbiose, e, finalmente, outras em que é o alvo de um predador ou de um parasita. A teoria dos dois cientistas é que os smartphones se comportam hoje connosco da mesma forma que um parasita se relaciona com o seu hóspede. E afirmam que tal como o vírus do Covid-19 luta para se manter no nosso corpo, com o objetivo de se desenvolver e criar as condições para ser transmitido, as empresas de tecnologia aperfeiçoam os seus algoritmos para que fiquemos o máximo tempo possível ligados aos nossos smartphones e às redes sociais de forma a maximizarem as suas receitas publicitárias.
Ninguém questiona a relevância e a utilidade dos smartphones (eu próprio, não sei como viveria sem o meu), mas não deixa de ser verdade que se transformaram num competidor feroz por um recurso raro: a nossa atenção. E é óbvio, e talvez este óbvio seja ululante, que, sobretudo, as redes sociais disputam o nosso tempo, competindo com os nossos amigos, com o nosso sono, com a nossa leitura, com a nossa música, e com muitos outros interesses que vamos deixando para trás.
Num tempo em que a tecnologia é também utilizada para nos soprar coisas ao ouvido, parece justa a reflexão sobre as suas diferentes dimensões e a forma como algumas delas devem ser reguladas. Quando se retiram os telemóveis das salas de aulas, a preocupação é que os alunos aprendam a pensar para chegar às respostas, que essas respostas não sejam obtidas, num segundo, através de um motor de busca, e que o tempo para aprender não seja consumido por outras distrações. A tecnologia que foi, justamente, percecionada como algo ao serviço da humanidade, foi-se aproveitando da nossa inércia e da nossa sonolência, ocupando todos os espaços vazios da nossa disponibilidade. Mas, não foi definitivamente a tecnologia que nos roubou o discernimento e o sentido crítico para saber quem nos ocupa e com o que nos devemos ocupar. Talvez, por isso, e apesar de concordar com o apelo de Richard e Rachel para uma maior regulação de todas estas plataformas, me pareça excessiva a metáfora do parasita e do hóspede.
Com este texto, encerro uma deambulação curta e despretensiosa sobre a inteligência artificial e a tecnologia. Na próxima semana, o jacaré regressa a outras águas menos profundas.
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