Editorial

Encolhi o ‘choque fiscal’ de IRS

O Governo, no mínimo, deixou criar uma ambiguidade sobre a dimensão do corte de IRS para 2024. Dessa forma, fragiliza a autoridade do ministro das Finanças, Miranda Sarmento.

O Governo começa muito mal a legislatura com a habilidade política em torno da descida do IRS em 2024 e, pior, sem necessidade nenhuma de inventar uma redução de impostos em sede de IRS que só serviu para descredibilizar o Governo a partir do primeiro dia em funções e para fragilizar a autoridade do ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, num contexto de governação e de pressão das corporações que já é difícil.

O primeiro-ministro disse efetivamente no primeiro dia do debate do Programa de Governo que a redução de IRS, especialmente para as classes médias, seria de 1500 milhões de euros em relação ao que os portugueses pagaram em 2023. O rigor acabou aí. Depois são subtilezas, e bandeiras políticas. Afinal, desde quando é que um Governo apresenta o seu próprio programa e inclui, sem o identificar de forma inequívoca, medidas de outro executivo que acaba de perder as eleições? Se incluiu no programa de Governo medidas fiscais que estão em vigor no orçamento de 2024, há outras? Ao fazê-lo, Luís Montenegro criou uma ambiguidade que, se não foi uma inovação propositada, foi simplesmente errada.

Nem sequer é preciso fazer processos de intenção. Durante o próprio debate, Rui Rocha, da Iniciativa Liberal, questionou a dimensão do alívio fiscal que estava a ser apresentado e, depois, o Governo deixou instalar-se no debate público a discussão em torno de uma nova redução de impostos que se somava à que os portugueses já beneficiaram com a entrada em vigor do orçamento deste ano. Deixou-o de forma consciente e deliberada, simplesmente porque foram colocadas várias perguntas sobre a redução de IRS e a nenhuma delas foi dada resposta (incluindo perguntas do ECO). Teria sido fácil corrigir as notícias que estavam a ser publicadas desde o primeiro momento, a tarde de quinta-feira e o discurso de abertura de Luís Montenegro. Talvez ainda esteja presente um certo espírito de campanha eleitoral.

O esclarecimento divulgado esta manhã de sábado e as explicações do líder parlamentar, Hugo Soares, não ajudam. Em vez de assumirem o equívoco de comunicação — uma versão benigna do que se passou, na linha do que fez o ministro da Coesão, Castro Almeida — e passarem para a frente, ficaram agarrados a uma tese conspirativa que não resiste a qualquer prova dos nove. O caso é o que é, mas parece que o Governo não está a perceber as consequências deste caminho.

Vamos por partes. Afinal, a redução de IRS em 2024 será de ‘apenas’ 200 milhões de euros face às tabelas de retenção e escalões que estão em vigor. É em si mesmo uma medida positiva, por isso é que o truque era desnecessário e de prudência orçamental. A discussão dos últimos meses em campanha eleitoral arrisca ter deitado fora uma coisa que parecia consolidada na sociedade portuguesa depois da troika, o controlo das contas públicas (como isso se fez é outra história) e por isso uma redução acrescida de 200 milhões de euros correria o risco de saber sempre a pouco. Só mesmo para quem vive de ilusões. Além disso, o Governo não estará (ainda) a falhar a promessa eleitoral de reduzir o IRS, em termos globais, em três mil milhões de euros para o período da legislatura, que só agora começou. No entanto, com esta ‘inovação de comunicação política’, ressalta uma pergunta: A projetada redução de impostos em IRS em 2024 diz respeito exatamente a quê? Que números são estes? Os portugueses podem acreditar?

A forma como o Governo comunicou a redução de IRS este ano traz à memória o truque de António Costa com as pensões. Com uma enormíssima diferença: Costa fez um truque para cortar as pensões futuras, sem assumir a decisão política, Luís Montenegro é apanhado numa habilidade que servirá para reduzir impostos. Costa percebeu o erro e corrigiu o tiro tão rapidamente quanto o pôde fazer. É o que Luís Montenegro tem de fazer, sem deixar alimentar o caso (para já, o PS pediu um debate de urgência já na próxima quarta-feira), e deveria fazê-lo para proteger o seu ministro das Finanças.

Escrevi, aqui no ECO, que Joaquim Miranda Sarmento está mais preparado para ser ministro das Finanças do que estava Mário Centeno em 2015. Continuo a assinar esta afirmação por baixo — até porque ainda não é claro de quem foi a ideia, peregrina, de vender uma descida de impostos que já está em vigor –, mas este episódio, e para já é só isso, tem desde logo uma primeira vítima política, e essa é Miranda Sarmento. Como ficou claro da pressão alta de André Ventura, que quer o ministro e a secretária de Estado a prestar contas numa Comissão parlamentar de Orçamento e Finanças.

O choque fiscal não é, nem de perto nem de longe, a única mudança que este Governo se propõe fazer. Mas como não se cansaram de afirmar Luís Montenegro e Joaquim Miranda Sarmento, com a carga fiscal recorde, e sem serviços públicos, com o brutal nível de esforço fiscal, os cortes de impostos ganharam uma relevância política única. A autoridade do seu ministro das Finanças é crítica, como era por exemplo a do ministro das Finanças de Liz Truss, a chefe de Governo inglesa que se demitiu ao fim de 45 dias em funções. O então chanceler do Tesouro, Kwasi Kwarteng, propôs um “mini-orçamento” com uma redução de impostos no valor de 45 mil milhões de libras que acabou por assustar os investidores. Miranda Sarmento não quererá ser Kwasi Kwarteng… Por si próprio, por Luís Montenegro e pelo país.

Foi Joaquim Miranda Sarmento a dar uma entrevista à RTP, a expor-se publicamente, e como era óbvio, isso não chegaria, daí ter havido a necessidade de um comunicado oficial do Governo. Também não chegará. Luís Montenegro deveria usar a sua credibilidade para defender o seu ministro das Finanças e para matar o assunto — é uma vida política gasta de forma precoce, mas pior é deixar instalar-se a ideia do truque.

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