Estão as Mittelstand familiares a caminho da capitulação?

A situação da economia alemã e dificuldades de sucessão estão a empurrar os empresários das famigeradas Mittelstand a abdicarem de um modelo tradicional de gerações e encarar a venda total ou parcial,

A situação da economia alemã atravessa um período muito complicado e não parece que o futuro se vislumbre muito melhor. O ministro da Economia alemão, Robert Habeck, disse há dias esperar que o PIB alemão volte a encolher em 2024, o que significa que a recessão se prolonga pelo segundo ano consecutivo. Quanto ao crescimento do outono, Habeck anunciou uma contração esperada de 0,2%, uma revisão em baixa brutal da previsão apresentada por si há seis meses : um crescimento de pelo menos 0,3%.

Habeck desculpou este mau desempenho com uma incapacidade estrutural de competitividade da economia alemã que nunca se conseguiu levantar da crise COVID “No meio da crise, a Alemanha e a Europa estão espremidas entre a China e os Estados Unidos e têm de aprender a afirmar-se”, disse. Mas o que está a Alemanha a fazer para sair da sua crise ? Onde está aquele que foi o motor económico da Europa e é hoje uma âncora que complica a recuperação da EU e a sua competitividade face aos EUA ou à China?

Os dados que saem das empresas alemãs contradizem as expectativas de Habeck, mostrando poucas razões para acreditar que a economia terá condições de recuperação a breve prazo. Em setembro e pelo quarto mês consecutivo um inquérito a gestores conduzido pelo Instituto IFO mostrou uma maioria insatisfeita com a sua situação atual e pessimista quanto às perspetivas futuras. cada vez mais a Alemanha é vista como the EU´s new problem child

Num mundo em mudança acelerada, a Alemanha não soube resolver os problemas estruturais que impedem o desenvolvimento da economia e das empresas em geral

Há muito que o governo alemão tem consciência do excesso de burocracia do aparelho de Estado. Desde a década de 1980, sucessivos governos prometeram a sua redução e fomentar o investimento. Hoje, Stefan Kooths, diretor do Instituto Kiel para a Economia Mundial (IfW), chega à conclusão preocupante de que alguns “esforços foram feitos” por esses governos, mas principalmente no papel, sem “ação política consequente”. Kooths também acha que melhorar a competitividade da indústria alemã é fundamental para voltar a uma trajetória de crescimento, mas advertiu que o crescimento “não pode ser “estimulado, tem de ser habilitado.” Por isso, critica os programas de estímulo do governo, dizendo que a atual iniciativa de crescimento alemã é um “passo na direção certa”, mas não trará uma reviravolta. Para que isso aconteça, seria necessária “uma mudança fundamental da política industrial intervencionista para uma política baseada no mercado que fortaleça o ambiente de negócios”, disse ele.

O paradigma da excelência e auto-suficiência das empresas alemãs começa a desmoronar-se, dando lugar a uma capitulação a favor da entrada de capital estrangeiro – “A prosperidade de um país não depende da nacionalidade dos seus empresários ou acionistas, mas da qualidade de seu ambiente de negócios”.

Kooths também descartou categoricamente que o governo alemão deva intervir para evitar uma potencial venda de empresas alemãs. Pelo contrário, defende as leis de mercado livre onde as empresas são obrigadas a serem alvos de aquisição “quando as suas estruturas não já não conseguem resistir à concorrência”.

Este estado de espírito favorável a operações de capital com agentes externos é novo e demonstra o desespero do tecido empresarial alemão, contradizendo a mentalidade de excelência nacional que colocava as empresas alemãs acima de tudo e todos. De facto, a ideia de aquisições estrangeiras de empresas alemãs, mesmo as parcialmente detidas pelos contribuintes, é vista hoje, em muitos círculos, como um processo natural.

O economista-chefe do ING Bank, Carsten Brzeski, disse à DW que “a estagnação económica e a mudança estrutural têm naturalmente consequências” para as empresas. “Durante esses períodos, as aquisições acontecem – seja por agentes internos ou externos” Stefan Kooths partilha deste ponto de vista acrescentando que “as empresas não têm passaporte”. A prosperidade de um país não depende da nacionalidade dos seus empresários ou acionistas, mas da qualidade de seu ambiente de negócios.

O problema da Alemanha neste momento é um ambiente de negócio pouco atraente, mas é uma questão de tempo para que a situação seja resolvida. E como há, entretanto, milhares de empresas com atributos competitivos estruturais de grande valor, temos entre mãos um contexto extremamente favorável à aquisição de empresas – para quem as queira reter ou para quem as queira revender mais tarde.

Muitas empresas alemãs de referência estão a chegar ao limite e dão o exemplo procurando soluções que eram impensáveis há alguns anos atrás

Debatendo-se com receitas e margens em queda, cada vez mais empresas alemãs de dimensão procuram parcerias com operadores mais fortes.

O operador ferroviário nacional alemão Deutsche Bahn é um caso recente. Concordou em vender sua atraente subsidiária logística Schenker à rival dinamarquesa DSV por cerca de € 14 bi. O encaixe vai sem dúvida oferecer à empresa mãe um impulso financeiro de grande relevo para a tentar ajudar a ultrapassar profundas dificuldades estruturais que impactam seriamente a sua qualidade de serviço, afastando a procura e reduzindo receitas.

Outro dos cotados para uma aquisição estrangeira é o Commerzbank, resgatado pelo governo alemão após a crise financeira de 2008/2009 e que ainda detém uma participação de 12% no banco. Os italianos UniCredit aspiram abertamente à aquisição total do Commerzbank e já detêm 21% do capital. A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, considera que as fusões bancárias transfronteiriças na Europa são “desejáveis” para que os bancos europeus possam competir “em escala, profundidade e alcance” com outros bancos mundiais. O Commerzbank prometeu que iria conseguir evitar uma potencial oferta pública de aquisição pelo UniCredit – mas neste contexto qualquer resultado é possível.

Enquanto isso, cada vez mais empresas abandonam o País, em particular investindo mais nas suas fábricas no exterior do que nas suas bases domésticas na Alemanha. A VW fechou várias fábricas na Alemanha, mas garante que outras noutros países vão ter reforços de produção importantes. A gigante química BASF está a construir uma fábrica de 10 mil milhões de euros na China. E a fornecedora de serviços de energia de médio porte Techem foi vendida por seus proprietários suíços à gestora de ativos americana TPG.

E as famigeradas “mittelstand”, a coluna vertebral de empresas familiares da economia alemã? O orgulho está a desaparecer e os problemas do País agravados pelas dificuldades em ultrapassar os crescentes problemas de sucessão empurram os empresários para a venda total ou parcial

Os principais analistas não têm dúvidas de que grande número das “mittelstand” familiares alemãs sejam vendidas nos próximos anos, dando lugar a uma explosão de fusões e aquisições na maior economia da Europa.

O boom económico alemão após a Segunda Guerra Mundial deu origem a muitas médias empresas com negócios florescentes. Hoje, muitas destas empresas estão a lidar com dificuldades de sucessão e mesmo de competitividade num contexto mundial mais aberto que traz consigo forças disruptivas sem precedentes. Algumas adaptar-se-ão através da inovação impulsionada pela próxima geração de proprietários e continuarão a crescer como empresas familiares, mas outras não terão alternativa à venda ou pelo menos a trazer capital externo essencial à sua modernização e crescimento.
“As empresas familiares alemãs procurarão encontrar uma solução interna para expandir os seus negócios, mas se isso não for encontrado e a sucessão for um problema, vão procurar vender a empresa”, diz Harald Link. “Uma venda comercial é a opção preferida, seguida por uma venda a fundos de private equity ou family office. A opção menos preferida é abrir o capital em bolsa”, diz Link.

A venda do Grupo Wirtgen em 2017 à empresa norte-americana John Deere foi já um exemplo desta tendência. Wirtgen, um grupo de máquinas de construção sul de de Colónia, era uma empresa familiar Mittelstand fundada em 1961 e que que cresceu sempre a bom ritmo. Enfrentando problemas de sucessão e uma oferta boa demais para recusar, os proprietários da segunda geração, Stefan e Jürgen Wirtgen, estudaram alternativas e acabaram por vender o negócio. É provável que outras empresas vendam a compradores muitas vezes estrangeiros que procuram ter acesso a empresas alemãs com tecnologia proprietária de alta qualidade “Compradores de lugares como os EUA e a China querem tecnologia para essas empresas”, diz Link.

Outros procurarão vender participações minoritárias para trazer capital externo e experiência num esforço para expandir os seus negócios, mas salvaguardando o controlo. Um exemplo desta tendência é a Ottobock, uma empresa familiar de próteses com sede em Duderstadt, no centro do país, que vendeu 20% do seu capital ao grupo sueco de private equity, EQT, no verão passado. Grupos de private equity e family offices estão particularmente interessados em fazer negócios na Alemanha, diz Link, e a intensidade da procura está a aumentar significativamente.

As muitas opções abertas às empresas familiares também representam um desafio”, diz Link. “Essas empresas não estão muitas vezes equipadas para lidar com questões como a venda de ações para compradores externos. Os consultores externos também utilizam o seu próprio jargão, tornando as decisões muitas vezes difíceis para estas empresas. Por isso é fundamental serem bem aconselhadas face às opções que podem tomar“.

Um estudo aprofundado da PwC comprova esta visão e mostra como se alterou radicalmente a perspetiva das Mittelstand face à entrada de parceiros externos no capital, em particular Private Equitye crescente sinergia entre ambos
Para as empresas familiares, vender uma empresa já não é um tabu: à medida que inúmeras crises e desafios surgem em sincronia, muitas encaram a venda, total ou parcial. As razões são as que se referiram atrás: uma situação global tensa, com desafios fundamentais como a digitalização, as alterações climáticas, a instabilidade geopolítica, a escassez de trabalhadores qualificados e as difíceis condições financeiras e, além disso, muitas empresas familiares são sobrecarregadas por questões sucessórias não resolvidas.

Neste contexto, não é de estranhar que 90% das empresas familiares inquiridas possam imaginar acolher o investimento em private equity. Em comparação, há dez anos, este grau de disponibilidade era de apenas 61% e, em 2011, era de apenas 18%.

Por outro lado, os investidores de private equity estão muito interessados em investir em empresas familiares, como mostram os resultados do nosso inquérito: 98% das empresas inquiridas planeiam fazer um investimento deste tipo nos próximos anos.

Os investidores focam-se principalmente em empresas familiares ágeis, com elevado potencial de criação de valor, e visam aumentar o valor da empresa ao longo do período de detenção do investimento. Em princípio, os investidores não estão interessados no crescimento a qualquer preço. Em vez disso, utilizam os seus conhecimentos para melhorar a posição de mercado das empresas familiares ou expandir a sua liderança no mercado – sem perder de vista a rentabilidade, claro. Raramente desempenham o papel de “salvadores em tempos de necessidade”: apenas um quarto das empresas inquiridas decidiria reestruturar as empresas familiares em dificuldades.

Existem discrepâncias de pontos de vista sobre quem detém a maioria do capital ou a estratégia de desenvolvimento futuro das empresas. Mas se os parceiros conseguirem ultrapassar as suas discrepâncias, é possível criar um verdadeiro valor acrescentado. Ambas as partes podem beneficiar uma da outra: os investidores através da criação de valor durante um período de detenção mais longo do que o habitual e as empresas familiares em termos de aquisição de capital, produtividade e liquidez acionista na entrada do fundo e com a venda da participação remanescente na saída.

Em síntese, a situação problemática da economia alemã agravada por dificuldades de sucessão vai arrastar muitas empresas familiares para novos paradigmas acionistas, erodindo o modelo tradicional que foi o motor do País desde a Segunda Guerra Mundial

A economia alemã está a viver um período negro, com mais um ano de recessão no horizonte e com cada vez mais empresas a entrar em dificuldades. Não surpreende por isso que que surjam cada vez mais tentativas de fusão ou de aquisição por fundos de investimento privados nos mais diversos setores – em grandes empresas, mas sobretudo nas famigeradas mittelstand, a coluna vertebral da economia alemã.

Mas isso é mau? Não necessariamente… muitas destas empresas entrariam em agonia sem parceiros externos e a experiência demonstra que as alianças de fundos de PE com empresas familiares fortalecem as empresas e, consequentemente, a economia no seu todo. Há um preço a pagar – a perda dos atributos distintivos que marcam as empresas familiares. Mas ainda assim não há razão para que muitos deles não sejam preservados pelo seu valor intrínseco – como a visão de longo prazo, a personalidade laboral de família alargada, o legado e os valore e a marca de nome da família.

Em todo o caso, acredito que a larga maioria das empresas familiares alemãs irá subsistir no seu modelo tradicional e, com o contexto económico mais favorável no seu País, lançar processos de sucessão poderosos e manter-se na crista da onda tecnológica que as trouxe durante gerações às notáveis posições de liderança, reputação e criação de valor que ainda possuem.

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