Europa das Europas

Para Ursula van der Leyen, existe apenas uma Europa sem alma política e sem identidade cultural que se limita a exercer a liberdade no labirinto do mercado.

Em Bruxelas existem enormes outdoors com a fotografia da Presidente Ursula von der Leyen com a seguinte mensagem: “Em eleições livres e justas, o poder das pessoas determina as pessoas no poder”. Existe uma tonalidade absurda que se evapora do slogan político, sobretudo por que vem de uma Presidente da Comissão escolhida numa sala asséptica e blindada ao escrutínio eleitoral da democracia. Mas há também o elenco da nova Comissão com uma outra linguagem política para designar os pelouros e que não deixa de impressionar pela rigidez Estalinista: “Comissário para o Novo Acordo Verde Europeu”; “Comissário para a Preparação da Europa para a Era Digital”; “Comissário para uma Economia que Funciona para as Pessoas”; “Comissário para uma Europa Forte no Mundo”; “Comissário para a Protecção do Modo de Vida da Europa”. Neste doublespeak há qualquer coisa de Orwell, sobretudo tendo em consideração que o romance “1984” esteve para se intitular “O Último Homem da Europa”. Estranhas são as ironias políticas subversivas.

Mas a questão central está no Comissário para a Protecção do Modo de Vida da Europa, antigo pelouro que geria a questão das Migrações. A primeira consequência política fervilha na convicção de que as novas Migrações são uma ameaça ao modo de vida da Europa. A Comissão pressionada pelo Parlamento Europeu, logo vem esclarecer que o ponto fulcral do modo de vida da Europa reside na liberdade de cada indivíduo para poder escolher o seu modo de vida. Tal explicação resulta numa contradição dos termos, primeiro existe um modo de vida, mas nesse modo de vida cabem todos os modos de vida – eis a política perdida no território que se estende do multiculturalismo ao mais exclusivo relativismo. O problema político é que a Europa não aceita, não reconhece nem define, um modo de vida especificamente Europeu. Dito de outro modo, a posição da Europa assenta num consenso na linha de John Rawls, não dando prioridade a um modo de vida particular mas simplesmente mantendo a condição política da neutralidade, condição que possibilita a consolidação de uma infinidade de modos de vida. Se esta é uma descrição conceptualmente rigorosa da visão política de Bruxelas, então não faz qualquer sentido falar em modo de vida Europeu.

Neste ponto crucial às Instituições da União, sobrepõe-se uma outra questão que divide as grandes famílias políticas da Europa, a saber: Qual é a principal ameaça ao modo de vida da Europa? Para a Esquerda, a designação do novo portfolio do Comissário resulta na expressão e na cedência às tendências mais xenófobas e mais populistas que proliferam no espectro político do Continente. Nesta região política à Esquerda, as Migrações representam o futuro da Europa, uma Europa aberta ao Mundo e à diferença; uma Europa progressista na política e progressista na percepção de um futuro multicultural em que ser Europeu não representa uma dimensão étnica, nem exclusiva, nem moral, nem religiosa, mas a afirmação de uma “utopia universal” baseada na paz, na segurança e na solidariedade – “Nenhum Ser Humano é Ilegal”. Para esta corrente marcada pelo activismo político, a grande ameaça ao modo de vida Europeu reside na emergência de um novo Nacionalismo agressivo e xenófobo, um Nacionalismo que defende a identidade da Europa com base numa concepção negativa do “outro”, um elemento estranho à comunidade e que deve ser contido, dominado e devolvido ao país de origem. É o regresso a uma “Europa Fortaleza”, uma ilha de prosperidade no Mundo engolido pela calamidade.

Numa perspectiva alternativa situada à Direita do espectro político, qualquer concepção de uma ideia política de Europa deve reconhecer o património da História e o primado da Memória. Nesta visão política mais profunda, a Europa é o resultado de um conjunto de opções e de escolhas realizadas num contexto histórico, geográfico e cultural específico e particular do Continente. O modo de vida Europeu não é uma emanação aleatória impulsionada apenas pelas opções individuais, mas por que é sobretudo uma visão do Mundo suportada por um elenco de práticas sociais, por um padrão de escolhas morais, por um conjunto de Instituições políticas, culminando todo o processo na convicção de uma igualdade básica em que todos somos feitos à imagem de Deus, independentemente da cor ou da crença. Não existe vestígio de neutralidade nesta concepção do modo de vida Europeu, tal como não existe a convicção de que as Migrações são a grande ameaça à Europa. A grande ameaça ao modo de vida Europeu reside na grande família política secularista. Neste ponto peculiar, duas concepções mutuamente exclusivas da Europa convergem na ideia de que as Migrações não representam uma ameaça existencial ao projecto Europeu. A Europa é o consórcio dos ideais seculares do Iluminismo com os valores morais do Cristianismo, uma confluência politicamente irresolúvel, dramática a tocar a dilaceração política do Continente.

Para Ursula van der Leyen, existe apenas uma Europa sem alma política e sem identidade cultural que se limita a exercer a liberdade no labirinto do mercado, ou na opção dos trainers com que se percorrem as infinitas ruas repletas de gente de todos os lugares. No exacto momento em que a Europa está transformada num não-lugar.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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