Eutanásia. Vamos (agora) discutir os princípios

Depois do chumbo da eutanásia no Parlamento por uma pequena margem, podemos dar início a um um debate sobre o tema noutra perspectiva: Olhando para os princípios.

§Na Terça-feira foram votados na Assembleia da República quatro projectos de lei referentes à eutanásia. Com a sua rejeição por uma pequena margem, podemos dar início ao debate sobre o tema na forma em que eu acho que deve ser discutido: Olhando para princípios. É que eu não subscrevo o aforismo leninista segundo o qual a prática é o critério da verdade. Prefiro adoptar uma postura aristotélica que começa por esclarecer conceitos. Sem ela, estamos muitas vezes num diálogo de surdos.

Embora recorrendo a terminologia diferente entre si, todos os projectos de lei que estiveram à consideração contemplavam apenas a morte assistida decidida por quem vai morrer. Que seja o próprio a executá-la (sozinho ou auxiliado) ou um terceiro, que se recorra a um medicamento ou a uma arma, que ocorra num contexto de doença terminal com sofrimento ou noutro introduz qualificações, mas não altera substancialmente a natureza do acto: Há alguém que escolhe antecipar a sua morte e, nesse sentido, parece-me uma forma de suicídio.

Por isso, estar a insistir na distinção entre as várias modalidades, que lá apareceu nas pausas da discussão sobre futebol, não me parece que seja contributo especialmente útil (e neste texto eu vou usar os vários termos indiferenciadamente). Até porque a “objecção de consciência” também foi sempre ponto assente, ou seja, ninguém será forçado, a arrepio das suas crenças, a auxiliar alguém no seu propósito de morrer.

Do mesmo modo, dispensa-se bem que se crie confusão com homicídio e eugenia, esses sim, conceitos diferentes. É certo que a Wikipedia menciona a eutanásia involuntária, mas esta nunca foi hipótese em cima da mesa, portanto, não vale a pena estar a trazer para o debate falsas questões, que ele já é suficientemente complicado sem elas.

Assim sendo, parece-me que a primeira interrogação é a de se deve um indivíduo poder decidir terminar a sua vida. Algumas pessoas entendem que não – muitas delas por convicção religiosa, que é, talvez valha a pena referi-lo, um fundamento tão legítimo quanto outros –, pelo que, para elas, a eutanásia não é admissível.

A inviolabilidade da vida humana estabelecida pela Constituição costuma ser citada neste contexto. E costuma oferecer-se como contra-argumento que, sendo estar vivo o contrário de estar morto (algo que Lili Caneças notou há algum tempo) e vice-versa (acrescento eu), o não reconhecimento do direito ao suicídio equivale a transformar a vida em obrigação. Esta é a parte em que permitir antecipar a própria morte passa a ser apresentado como equivalente a um exercício de liberdade.

A questão é, porém, complexa. Implica definir o próprio conceito de liberdade e perceber quão efectivamente livres somos nas nossas escolhas. Pode-se dizer que uma pessoa que padece de uma doença incurável e fatal e que está em sofrimento faz uma opção verdadeiramente livre quando decide morrer? Esta pergunta não pretende alimentar o frequentemente utilizado argumento de colocar cuidados paliativos e eutanásia como coisas mutuamente exclusivas (aliás, decida-se o que se decidir sobre a morte medicamente assistida, a aposta nos cuidados continuados, no alívio da dor tem de ser um imperativo). É somente uma pergunta altamente metafísica, mas para a qual importa procurar resposta neste debate.

Mas mais. Mesmo que se conclua que as condições que se oferecem às pessoas para suportar a sua doença não afectam a sua capacidade de tomar decisões livres, um outro problema emerge, porque a liberdade de pôr fim à vida hoje significa prescindir da liberdade de amanhã, dada a irreversibilidade da morte. É como aquele problema de uma democracia poder eleger uma ditadura. Sobre a intolerância, disse Popper que os tolerantes não a devem tolerar. Um paradoxo, portanto. E aqui também o temos, pelo que é perfeitamente possível que também um indefectível defensor da liberdade individual rejeite a possibilidade do suicídio.

Tal afastamento não fecha, contudo, o debate. Ainda que se ache que causar a própria morte deve ser proibido, sobra uma pergunta: Deve ser penalizado? Para muita gente, a proibição implica necessariamente uma pena, mas não é assim. Uma coisa pode não ser permitida, mas não ser penalizada. Basta pensar na moldura legal que temos para o consumo de droga. Há uns anos, a propósito do referendo sobre aborto, Marcelo Rebelo de Sousa explicou isto, virando depois um popular sketch do Gato Fedorento, que parece não ter apreendido bem esta ideia.

Uma outra confusão comum é entre permissão e concordância. Essa decorrente de uma certa falta de pluralismo. Numa sociedade genuinamente democrática, compreende-se que o facto de eu reconhecer o direito a fazer alguma coisa nada indica que tenha essa coisa por benéfica. Por exemplo, se dependesse de mim, ninguém quereria fumar, que eu detesto tabaco, acho um hábito pouco saudável. E, no entanto, não me passa pela cabeça que um fumador não tenha direito a sê-lo, contando que não imponha o seu fumo a quem não o quer respirar. Portanto, pode-se, sem hipocrisia nem incoerência, permitir algo que se considere ser indesejável e agir até no sentido de se tentar evitá-lo (embora sem proibir).

Daí que a legalização da eutanásia não pressuponha a sua oferta pelo Sistema Nacional de Saúde. Essa é a pergunta que se segue se o entendimento for o de que um indivíduo tem o direito a terminar a sua própria vida: Qual a relação do Estado com esse direito? Naturalmente, competir-lhe-á sempre assegurar que a assistência no suicídio não é indevidamente utilizada para promover homicídios. Mas garantir que as pessoas não morrem contra a sua vontade é já hoje uma obrigação do Estado. Decidindo-se que o Estado deve estar envolvido na própria provisão da eutanásia, há que definir em que circunstâncias e de que modo.

Para finalizar, duas notas mais ou menos avulsas.

  1. Numa altura em que o confronto político está entrincheirado e que as posições se definem muitas vezes por oposição ao mensageiro e não à mensagem, ver PCP e CDS a votar no mesmo sentido dá-nos alguma esperança de que certas matérias possam buscar consensos.
  2. Gostei de ver várias vezes referida a questão dos programas eleitorais. Sem qualquer espécie de “whataboutismo”, espero que a preocupação com a consistência entre aquilo que foi falado e prometido em campanha eleitoral e o produto de votações na Assembleia da República passe a ser uma constante e transversal aos vários temas. Por outro lado, ver os deputados a serem chamados a publicamente exprimir o seu voto recordou-me que devíamos exigir um sistema eleitoral que os fizesse representantes daqueles que votam e responsáveis perante estes, em vez de listas que cultivam a disciplina partidária.

Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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