Fábrica de Presidentes

A democracia portuguesa está a passar por um período de reconstrução e a clássica figura do “estadista” é fundamental para a definição da configuração adequada aos novos tempos.

Em política os símbolos são fundamentais. A apresentação da candidatura do Almirante não teve o brilho da Nova República. Os frescos de Almada Negreiros são a celebração de um Portugal mítico e passado. A Gare Marítima invoca viagens longínquas, um povo extinto, militares no Ultramar. O Cais da Saudade que abraça o Oceano.

O discurso do Almirante teve a desinspiração dos discursos de outro Almirante e a vacuidade de um apelo surdo. A figura presidencial ríspida, desarticulada, que lê mecanicamente um texto numa máquina e que não consegue entusiasmar as memórias que os portugueses reais vivem. As Quinas Vivas encontram as Quinas Mortas e a doença do passado mistura-se com a ideia do futuro.

É sempre assim. Quando o sebastianismo português se entranha num projecto político, o resultado é a figura heróica de um homem que se julga providencial e que responde ao apelo dos séculos. O grande século português ficou no passado e desde então Portugal é um país à procura de um destino interrompido. Na vox populi inspirada numa noite de comentário, o Portugal que esteve presente na Gare de Alcântara é a marca do saudosismo algures entre o “Quinto Império” e a “RTP-Memória”. O Almirante pretende resgatar o país dos escombros da democracia e retomar o destino natural de Portugal.

Nada disto é novo nem novidade. Um candidato que não quer o apoio dos partidos é uma figura política que assume uma legitimidade própria que emana do povo. O povo detém o espírito da nação. Os partidos corrompem o espírito da nação. O povo é puro e imaculado. Os partidos são venais e garantem os interesses das clientelas. Existe trajecto político mais épico e evocativo da História Trágico-Marítima do que um Almirante que, cumprido o serviço na ponte de um navio, se disponibiliza para a grande nave de Belém? Este é o percurso de um país condensado na vida de um homem. Para que servem ideias, programas, projectos, políticas, quando o que orienta a candidatura do Almirante é uma visão profunda da identidade do país? Estamos a exigir ao intérprete do futuro que funcione como os protagonistas políticos de um passado recente que trouxe Portugal a este enigma e a esta estagnação. O Almirante não está ao lado dos partidos. O Almirante não está acima dos partidos. O Almirante é o representante de um grande partido chamado Portugal.

É exactamente neste ponto que entra o patriotismo do Almirante porque o patriotismo do Almirante exige uma “versão democrática da unanimidade” e deste modo “ignora o país real e recusa o pluralismo”. Como leio algures sobre as dificuldades políticas do patriotismo, o “patriotismo abstracto” do candidato tanto “despreza o país real” como confunde a pátria com o “recheio de uma loja de antiquários”. O Almirante é um patriota de um “país imaginário”. Dito de outro modo, o patriotismo do candidato coloca-se para além da democracia, aponta para uma nova fase do Regime que ninguém quer reconhecer ou aceitar. E este impulso na direcção de uma destruição criadora ficou bem patente nas palavras e nos silêncios do discurso inaugural, a saber – “Uma terapêutica da vontade, um narcisismo respeitável, em que cabem as veementes intimações presidenciais para que os portugueses tenham confiança em si próprios e sejam melhores e mais admiráveis”. O discurso do Almirante representa o “esgotamento do patriotismo na relação com um imaginário passado de grandeza”, ao mesmo tempo que acrescenta um desfasamento com um imaginado futuro de grandeza. Há qualquer coisa de “Rei das Berlengas” em certos momentos da candidatura organizada como proposta política que exclui a política.

Para os portugueses, o Almirante parece ser já o Presidente da República. Dizem que é o “ar do tempo”, que é a “saturação democrática”, que é o resultado do fracasso dos 50 anos da democracia de Abril. Os portugueses são tolerantes com as autocracias e intolerantes com os democratas.

Imaginam a distopia de um Portugal com o Almirante Presidente da República e com o Chega a Primeiro-Ministro? A concretizar-se esta realidade política, a República entra numa nova fase, para não escrever que o país entra numa Nova República. As instituições em Portugal são demasiado débeis, demasiado fracas, demasiado ausentes.

A cultura cívica portuguesa é demasiado fortuita, demasiado pobre, demasiado temente, nada afirmativa, respira resignação. Quando os candidatos naturais a Belém se escondem, quando a Presidência da República está transformada numa agência de animação permanente dos afectos, os candidatos parecem acreditar que a Presidência da República é um ofício ao alcance da ambição de qualquer cidadão. Sublinhe-se que o patriotismo dos afectos falhou com Marcelo completamente diluído na voragem da intriga política.

Convém não esquecer que a democracia portuguesa está a passar por um período de reconstrução e que a clássica figura do “estadista” é fundamental para a definição da configuração adequada aos novos tempos. Vai Portugal embarcar na aventura com o relógio público parado?

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