Funeral Eleitoral

O regime democrático é o retrato de uma mutilação, mas todos representam os seus papéis numa rotina cansada e que cobre o país de tédio.

São as ironias da política nas curvas do destino. Em plena campanha eleitoral, um dos fundadores da democracia portuguesa desaparece subitamente. Em Portugal todos os homens políticos são grandes, não obstante o facto de o país continuar pequeno. Em Portugal nenhuma carreira política acaba em falhanço, extingue-se quase sempre por morte natural. O cenário é composto com solenidade, o respeito é assumido com severidade, os elogios propagam-se para a eternidade. Em Portugal a eternidade política dura um dia e a vulgaridade expande-se sem limites. Há quem diga que tudo é cinismo, fingimento, cálculo político. Seja como for este é o país que é e que para sempre será.

Quando a esquerda elogia e reconhece um homem de direita é por que a esquerda ganhou e a direita perdeu. A normalidade do ato no país de Abril não espanta ninguém, apenas os “idiotas úteis” que acreditam na sinceridade da mentira. Os elogios da esquerda, muitas vezes com os sons do silêncio, representam a má consciência de quem tudo fez para aniquilar a direita à nascença. Sendo a direita iníqua e autoritária, retrógrada e fascista, a respetiva aniquilação é um contributo para o sucesso do progresso e da democracia. São os paradoxos que a dialética política da esquerda supera com brilhantismo.

Uma observação cuidada da campanha eleitoral pode verificar imediatamente que a direita perde por falta de comparência. Em Portugal não existe direita, nem democrática, nem social, nem liberal, nem conservadora, nem nacionalista. Existem discursos políticos que reproduzem dispersas as ideias próprias destas famílias políticas, mas não existem partidos com implantação social e nacional para representarem uma visão genuína e uma sensibilidade portuguesa de direita. Em Portugal não existe uma tradição política à direita, a não ser a experiência da ditadura e os sonhos adolescentes em homens de meia-idade. O regime democrático é o retrato de uma mutilação, mas todos representam os seus papéis numa rotina cansada e que cobre o país de tédio.

Mais fácil para a esquerda elogiar a direita na pessoa de um homem que também serviu a esquerda. Nestes casos, mais do que o desempenho, a seriedade, a competência, a esquerda celebra com orgulho o troféu político conquistado, a prova viva e cabal das insuficiências da direita. Limitações sociais e preconceitos ideológicos à parte, o brilho e a distinção do troféu celebram a grandeza do destino manifesto de uma esquerda superior. Nas revoluções deste jogo político os riscos sempre são maiores do que os eventuais benefícios. Evocando quem agora se despede do reino dos vivos, fica a memória de um político que quase foi presidente da república eleito pela direita, mas que quase foi candidato a presidente da república escolhido pela esquerda.

Fala-se hoje dos pais fundadores da democracia portuguesa – Álvaro Cunhal, Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral. Cunhal perdeu a batalha pela sociedade socialista; Soares ganhou a disputa pela democracia ocidental; Sá Carneiro deixou a inspiração para um “projecto de liberdade”; Freitas do Amaral fez a transição da “direita autoritária” para democracia e deixa um legado por cumprir na fundação de uma direita normalizada e democrática. Para quem discorda desta afirmação basta observar os gestos e as palavras políticas da campanha eleitoral. Um partido socialista dominante e charneira do regime democrático; um partido comunista a relembrar o património de Abril em cada voto; um partido social-democrata a tentar parecer-se com um partido socialista aditivado pela responsabilidade; um partido popular perdido entre o centro político e um discurso pensado para apelar para uma espécie de “tecnocracia de direita”, independentemente do significado difuso da palavra direita. Enquanto a esquerda se multiplica em grupos, movimentos, partidos, causas, amplificando a natureza sectária do regime democrático, a “direita generalista” hesita entre o sucedâneo socialista e a derivação de uma direita distante.

A campanha eleitoral representa a deformação democrática constitutiva, por incapacidade dos homens políticos, pela “força dos acontecimentos”, pelo “drama das opções”, pela resolução histórica das tendências em confronto. Alguns lerão nestas palavras o reflexo de uma questão política por resolver na democracia portuguesa. Alguns negarão que exista uma qualquer outra questão política na democracia portuguesa, isto para além do problema do progresso e do desenvolvimento. Estas palavras transportam certamente ecos de privações e de vigilância em “tempo de guerra”; tal como incorporam a necessidade de se pensar a democracia como elemento constituinte da identidade e da solidariedade de uma nação. Haverá sempre o desejo de contrapor novas imagens mais verdadeiras às velhas falsidades que alimentam os mitos, por que só desta forma o mundo e as suas atitudes conseguem avançar um ou dois milímetros. Uma reflexão muito para além da conformidade e do medo.

Portugal vai a votos. Portugal despede-se de um homem que, no momento da vitória, deixou a marca da derrota na direita portuguesa. André Malraux escreve que Portugal é o país da “irrealidade política”. Em Portugal nenhuma vitória é eterna. Em Portugal nenhuma derrota é para sempre.

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