Gémeas Presidenciais

A palavra do Presidente é a assinatura de uma condição social e política que é o retrato de um Portugal que nunca deixou de existir – a Nação dos influentes e o País dos dependentes.

O Presidente está politicamente assombrado pelas gémeas. A declaração pública numa sala branca ao estilo de um espaço liminar revela culpa e cinismo. Sem os símbolos da República, o Presidente pretende ser apenas o cidadão que nunca foi. E assim aproximar-se da normalidade de todos os portugueses. Só que o Presidente dos afectos, da proximidade, das selfies, é apenas a imagem política de um cidadão que sempre esteve ligado à coisa pública. Pois Marcelo nunca foi um português normal porque sempre pertenceu a uma casta acima do português normal. Por ser filho de um dignitário do antigo regime, afilhado de um Presidente do Conselho, a maravilha fatal da universidade e o génio do comentário político. A palavra do Presidente é a assinatura de uma condição social e política que é o retrato de um Portugal que nunca deixou de existir – a Nação dos influentes e o País dos dependentes.

O Presidente não podia ter feito o que fez no caso das gémeas brasileiras. O Presidente não podia ter dado despacho oficial a um email do filho. Um Presidente não tem filhos. Um Presidente serve a República. O Presidente no seu escrúpulo natural nem se apercebe do alcance do seu apelido no labirinto da administração pública. É de tal modo habitual este comportamento de um privilegiado que se torna invisível aos olhos do privilégio. Só que o País normalizado de Abril, os media agressivos, a urgência das notícias, aumenta a pressão e o escrutínio público sobre este tipo de gestos grandiosos de bondade. A bondade é a revelação de um regime de privilégio em que a vontade de um Presidente se sobrepõe aos procedimentos da República. A Presidência de um homem solitário resulta nesta cegueira de quem se sente dono de um País que sempre conheceu assim, mas que entretanto deixou de aceitar a benesse de um tratamento de excepção com recomendação superior.

Neste gesto para com as gémeas atlânticas está a marca de água do perfil político do Presidente. Não tem relação com a esquerda ou a direita. Não tem relação com a dimensão política democrática sobre a qual o Presidente tem de regular e garantir. O que está em causa é a matriz de referências de uma educação política que faz de Marcelo a excepção que Marcelo é. Primeiro, o reflexo de uma cultura política em que a função social do Estado é uma espécie de concessão pessoal e não um direito constitucional estabelecido. Segundo, uma forte componente do “catolicismo progressista” e a opção preferencial pelos mais pobres – este “paternalismo assistencialista” é um dever cristão e uma imposição da consciência, não um gesto político secular. Finalmente, uma certa “nostalgia do escuteiro” em que a irreverência é apenas a aparência social de uma conformidade com o mais puro “nepotismo”. A vontade de agradar é também uma vontade de poder.

Quando o País está sem Governo, quando a Justiça demonstra toda a sua tendência “justicialista”, quando as suspeitas de corrupção derrubaram uma maioria absoluta, quando se decide o novo aeroporto velho de 50 anos, quando o TGV é anunciado com 20 anos de atraso, quando os projectos do PRR são apresentados na incerteza de um ritmo acelerado, quando as instituições de um Portugal democrático exibem uma degradação impensável, o Presidente da República não pode ter gestos levianos e impensados como se fosse o grande benemérito do universo de todo o “Mundo Português”.

O País está suspenso de umas eleições que podem consagrar uma mudança das práticas políticas normalmente estabelecidas na democracia portuguesa. A erosão do bloco central; o reforço do Parlamento com o estabelecimento de dois grandes blocos à esquerda e à direita; o aparecimento de um terceiro partido à direita capaz de protagonizar uma oposição violenta e subversiva; a perspectiva de um modo de governação baseado em coligações partidárias como no modelo nórdico.

Tudo aponta para a lógica política dos “ciclos curtos” e das “maiorias oportunistas” que prolongam uma instabilidade disfarçada. Perante um cenário de incerteza e de instabilidade políticas é urgente um Presidente da República com poder político e autoridade moral. O Presidente com a sua deriva politicamente diletante e com uma “moralidade universal humanitária” acaba por marcar negativamente o mandato. Um Presidente incapaz de exercer uma “magistratura de influência” é uma futilidade democrática e um factor adicional a uma crise de Regime.

Embora tenha ficado em primeiro lugar no concurso, Eça de Queiroz não foi Cônsul no Brasil pelo empenho de uma recomendação superior. Depois, há a imagem das gémeas, dispositivo de muitos romances e outras novelas. Neste caso, a novela política confunde-se com a letra de um fado. Nos corredores de Belém, as gémeas de Kubrick assombram a papel político do Presidente da República.

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