O Governo está cercado por todos os lados – no Parlamento entre a esquerda e a direita radical; no país entre as dificuldades dos portugueses e os interesses das corporações.

Um Governo para um país em “estado de sítio”. Um Governo para o “novo ciclo” absolutamente desconhecido. Um Governo com urgência para um país parado. Mas um Governo objecto de uma autópsia ministério a ministério, ministro por ministro, como um “cadáver esquisito” dividido nas suas partes constituintes – um Executivo a “prazo”, um Governo de “combate”, um Executivo em “campanha eleitoral, um Governo de “choque”, um Executivo do “núcleo duro partidário”, um Governo sem “alargamento da base de apoio”.

Neste exercício de anatomia política escapa a essência para a compreensão do momento político que Portugal atravessa – este Governo terá sucesso no seu conjunto ou cairá como um castelo de cartas viciadas. No tempo da democracia portuguesa não há tempo para “estados de graça”, não há espaço para aprendizagens políticas, este é o Governo a que tudo será exigido de imediato por um país empobrecido e pelas corporações impacientes. O tempo das palavras esgotou-se. Começa o tempo da acção política imediata. O Governo será aquilo que conseguirá fazer ou não será nada. O Governo é o objecto identificado que todos pretendem derrubar.

Existem três tipos de Governo – o Governo que comanda o tempo dos acontecimentos; o Governo que assiste ao ritmo dos acontecimentos; o Governo que nem reconhece os acontecimentos. Para ter sucesso num cenário tão complexo e desconhecido, o Governo terá de tentar comandar o tempo dos acontecimentos. Tarefa talvez impossível, mas essencial para a governação como exercício imprevisível num cenário de elevada volatilidade.

Na democracia dos “três tronos” ninguém é suficientemente forte para governar sozinho, ninguém é suficiente forte para governar em coligação. As coligações neste tempo democrático são ameaças existenciais aos partidos clássicos e estabelecidos. Para evitar o suicídio político o Governo tem de ter a inteligência da antecipação e o calculismo da negociação. A normalidade da inteligência e do calculismo permitem que o Governo contorne as incidências do cerco democrático à esquerda e à direita. A inteligência sem o calculismo acaba na inconsequência da incapacidade política; o calculismo sem a inteligência acaba na consequência de um conflito político em que o Governo acabará derrotado. No episódio da eleição do Presidente da Assembleia da República o PSD portou-se como um Governo que nem reconhece os acontecimentos. E aqui entra a questão incontornável do Chega.

Minoritário na frente parlamentar, o Governo depende de uma coordenação constante e permanente entre o PSD no Parlamento e o PSD no Governo. Convém sublinhar que o Governo enfrenta duas oposições simultâneas, antagónicas entre si, mas com objectivos estranhamente comuns – o PS pretende empurrar o Governo para a esfera do Chega; o Chega pretende pressionar o Governo para a influência do PS.

O PS será sempre institucional enquanto organiza o partido e as políticas para um novo estádio no poder. Mas a cada acção institucional o preço político será maior até ser verdadeiramente incomportável para o PS e para o PSD – a percepção de um Bloco Central informal só servirá para inflamar o Chega na sua marcha indisfarçável para o poder e para o caos. O Chega não é apenas um adversário político que não assume o jogo democrático com as regras correntes e vigentes. O Chega é uma alternativa ao “sistema”, uma alternativa ao “regime”, e para tal usa a estratégia da direita radical europeia que é a de mudar a democracia liberal por dentro. A democracia portuguesa está em pânico com a força do Chega suportada pelo voto de um milhão e duzentos mil portugueses de norte a sul. Entre um partido que faz a política do caos e os votos que o consentem há uma certa “cumplicidade vergonhosa”. Eis uma lição que a democracia portuguesa e os portugueses devem aprender.

O Chega não é um partido clássico. O Chega é uma facção clássica. Sem um núcleo ideológico, sem uma intenção construtiva, o Chega entende os seus cinquenta deputados como a definição de uma “fronteira” entre o “bem” e o “mal”, uma “fronteira” entre os “verdadeiros portugueses” e os “portugueses vendidos”. Daí querer “limpar” o país, daí o discurso da “corrupção”, daí a arrogância agressiva e demagógica que apenas pretende diminuir os inimigos políticos para governar sobre o vazio de um novo país imaginário. Para o Chega a democracia é um erro estatístico. O país do Chega é uma extensão da vontade de Ventura. E a vontade de Ventura nunca será uma vontade democrática.

O Governo está cercado por todos os lados – no Parlamento entre a esquerda e a direita radical; no país entre as dificuldades dos portugueses e os interesses das corporações. Portugal é um sítio triste com as janelas mal lavadas. E o governo do mundo começa em nós mesmos. Uma frase que os portugueses vão gostar de ouvir quando o Presidente da República rasgar o seu silêncio.

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