Guerra e política energética europeia, um prelúdio

  • Filipe de Vasconcelos Fernandes
  • 3 Março 2022

Uma das principais contingências que, em termos energéticos, decorre do conflito em curso prende-se com o peso energético que a Rússia detém à escala europeia (e global).

I. Do conflito em curso à posição da Ucrânia no contexto energético europeu

Ao momento em que se escreve este breve texto, passam já sete dias do lamentável conflito armado que eclodiu em território ucraniano e que, sem particular exagero, integra já uma das páginas mais negras da primeira metade do Século XXI.

Dirigindo agora enfoque às suas consequências para o plano energético, importa começar por aludir ao posicionamento da Ucrânia no contexto energético europeu e, sobretudo, à sua relação com o sistema energético europeu de base continental, por ser aquele que mais diretamente se relaciona com o contexto nacional.

Historicamente, a Ucrânia teve um papel muito relevante no sistema energético europeu, dado que, pelo menos até à década de 1990, a maior parte do gás natural exportado pela Rússia para o território europeu continental cruzava território ucraniano. No entanto, ao longo das décadas subsequentes, a Rússia diversificou as respetivas rotas de exportação, através dos gasodutos Yamal-Europa (Bielorrússia e Polónia), BlueStream e TurkStream (Turquia) e Nordstream 1 (Alemanha), sendo sobejamente conhecida a mais recente situação em torno do Nordstream 2 (com o Governo Alemão a tomar medidas para interromper o processo de certificação do gasoduto, a que se seguiram consequências, de entre outros, para o operador de transporte).

De acordo com dados da Agência Internacional de Energia (IEA), relativos ao intervalo de tempo entre 1998 e 2021, este conjunto de circunstâncias levou a uma redução do trânsito de gás natural por território ucraniano em cerca de 70%.

Atualmente, a Ucrânia é essencialmente um corredor para o gás natural importado pela Eslováquia e, bem assim, por Áustria e Itália, razão pela qual a Rede Europeia de Operadores de Redes de Transporte (ENTSOG), concluiu recentemente que os impactos (a jusante) de um corte no fornecimento através de território ucraniano poderiam ser geridos com base na maior diversificação da oferta e na própria colaboração regional.

Este conjunto de dados – a que aludimos em termos breves e simplificados – permite antecipar que o posicionamento da Ucrânia face ao sistema energético europeu não é o aspeto mais relevante para antecipar as consequências que, no próprio plano energético, decorrem do atual conflito e das reações dos principais interlocutores, nos planos político-militar e económico.

Mais relevante, para o referido propósito, é o posicionamento da Rússia em relação ao sistema energético europeu e, sobretudo, os efeitos das sanções aplicadas pela União Europeia ao nível da oferta de energia – em particular, de gás natural.

II. Alguns dados sobre o peso energético da Rússia

Uma das principais contingências que, em termos energéticos, decorre do conflito em curso prende-se com o peso energético que a Rússia detém à escala europeia (e global).

Ao nível do mercado petrolífero, a Rússia é o terceiro maior produtor à escala mundial, atrás de Estados Unidos da América e Arábia Saudita, ao mesmo tempo que é o maior exportador de petróleo e o segundo maior exportador de crude para a generalidade dos mercados globais.

De acordo com dados da Agência Internacional de Energia relativos ao ano de 2021, no mês de novembro, cerca de 60% das exportações de petróleo russas tiveram por destino a Europa (contexto OCDE) e cerca de 20% a China.

Já ao nível do mercado do gás natural, a Rússia é o segundo maior produtor à escala mundial, atrás dos Estados Unidos da América, relevando ainda o facto de a União Europeia ser o maior importador de gás natural russo à escala mundial, com um valor que ascende a cerca de 41%.

Adicionalmente – de acordo com dados da Direção-Geral de Energia da União Europeia, cerca de 25% da energia consumida na União Europeia provém do gás natural, imputando-se a restante parcela, nos segmentos mais expressivos, a petróleo e produtos petrolíferos (32%), energias renováveis e biocombustíveis (18%) e combustíveis fósseis sólidos (11%).

III. A posição da União Europeia e o reposicionamento da oferta energética

A Rússia continua a ser o principal fornecedor de gás natural da União Europeia, representando cerca de 41% do gás importado, seguindo-se Noruega (24%) e Argélia (11%).

Nos últimos anos, a Europa aumentou as importações de gás natural liquefeito (LNG) dos EUA, e Qatar, de tal forma que, as importações provenientes da Rússia caíram cerca de 9%.

Atualmente, a capacidade adicional das redes e infraestruturas permite adicionar cerca de 17 Terawatt-Hora (TWh) de importações semanais da Noruega, Norte da África e Azerbaijão, bem como volumes adicionais de LNG.

Tal deve-se ao facto de, na sequência das crises energéticas de 2006 e 2009, a União Europeia ter efetuado um forte investimento em infraestruturas que lhe permitem incrementar a eficiência na importação de gás por via marítima e, ao mesmo tempo, agilizar o respetivo transporte por todo o continente europeu.

Os mais recentes desenvolvimentos ocorridos, com destaque para o conflito armado em curso, permitem antever que ao reforço dos investimentos em fontes renováveis (incluindo os gases renováveis, com especial relevo para o segmento do P2G) somar-se-á uma alteração do perfil de exportadores de gás natural para o território europeu.

IV. Algumas perspetivas de futuro

Todo e qualquer conflito armado incorpora uma ampla margem de incerteza, não sendo distinto o cenário subjacente ao conflito que, infelizmente, subsiste em território ucraniano. Ainda assim, e assumindo que a sua ocorrência trouxe consequências de largo espetro para os vários mercados de energia, algumas conclusões preliminares poderão oferecer-se:

  1. No curto prazo, a crise energética que se avizinha (sobretudo na ótica dos preços) poderá oferecer algum abrandamento à transição energética, sabendo que as principais medidas de contenção terão enfoque no gás natural e não necessariamente no carvão (mais poluente);
  2. No longo prazo, a previsível instabilidade nos mercados de gás natural irá acelerar os esforços da União Europeia para reduzir a sua dependência de fornecimentos russos, com o aumento de peso das fontes renováveis e o reposicionamento na oferta de gás natural;
  3. Ainda no longo prazo, dependendo do desfecho final deste conflito, a Ucrânia poderá ter um papel muito relevante na transição energética europeia, aspeto que não terá sido alheio à perspetiva russa – bastando recordar que, de acordo com dados da Agência Internacional de (IRENA) relativos ao já remoto ano de 2015, o potencial renovável da Ucrânia ao nível da eólica onshore pode atingir os 320 GW e no solar os 70 GW até 2030, a custos considerados competitivos.

Reforçando o seu relevo no longo prazo, este aspeto não será seguramente irrelevante para o posicionamento da Ucrânia em relação ao processo de integração europeia.

  • Filipe de Vasconcelos Fernandes
  • Assistente na Faculdade de Direito de Lisboa e counsel na Vieira de Almeida

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