Ideal Nacional

O Plano de Recuperação e Resiliência reflecte em modo falso, calculista e tecnocrático um velho tropo da cultura política nacional.

O Plano de Recuperação e Resiliência desceu ao Parlamento e os portugueses viram em tom de lantejoulas a desgraça da Nação. O Parlamento parece ser o que sempre foi no hemiciclo da grande política portuguesa – sábios, soberbos e profetas que enchem o ar com o carbono das palavras que apenas contribuem para o aquecimento global. O debate mais parecia uma conversa na esplanada de um bar, como pássaros tontos a delirar sobre a economia verde, o salário mínimo, o papel do Estado, a primazia dos privados, a justiça social, os ódios de estimação, o Serviço Nacional de Saúde, os abcessos de fixação, a retórica no riso das crianças dos outros, a importância do mar e do campo e das árvores e no jardim de São Bento os cães passeavam indiferentes no cumprimento da sua rotina diária. O Parlamento é um lugar porque não consegue ser uma Instituição.

O nome do Plano parece que foi inventado para descrever a convalescença de um acidente rodoviário numa auto-estrada subsidiada por dinheiros de Bruxelas. Recuperar talvez da indigência de sucessivas gerações de políticos, quer em ditadura, quer em democracia. Provocar talvez a resiliência dos portugueses para suportar a indigência política estrutural perante a incerteza de um Mundo perigoso. O Plano existe porque Bruxelas exige. Tanto assim, que os deputados nem se deram ao trabalho de ler e de pensar o documento com a substância e a inteligência da crítica construtiva. Portugal orgulha-se politicamente em não fazer contas nem elaborar planos. Politicamente é um País de poetas e o capricho da arte política convive mal com contabilidades rigorosas e ideias para o futuro. O futuro é hoje.

O Plano reflecte o pânico do País perante a avalanche de subsídios a fundo perdido que aguardam para se perder em Portugal. O País treme só de imaginar o excesso de dinheiro que vai ter para “gastar”, pois gastar é o verbo e não “investir”. Os cérebros do Governo estremecem de tanto pensar como vão gastar tanto dinheiro, pois têm a consciência que Portugal não perde uma oportunidade para perder uma oportunidade.

O Plano é um elenco de medidas avulsas, sem desígnio, sem coerência, sem prioridades, sem uma visão política e económica homogénea para o posicionamento de Portugal no novo concerto da Nações. Pensar a política não é um exercício académico feito em mês e meio, nem é o programa de uma cadeira intitulada “Desenvolvimento Sustentável”. A política a pensar o futuro é uma reflexão sobre a cultura política de uma Nação, uma reflexão sobre o papel das Instituições, uma reflexão sobre a Identidade de um País. Reduzir um Plano a um exercício de identificação das tendências modernas que vagueiam no ar do tempo, é a política com propulsão a hidrogénio, é o Governo em trânsito num automóvel eléctrico, são os portugueses estáticos transformados em objectos voláteis e elásticos. Portugal faz um esforço homérico para se levantar da cadeira, mas não percebe que está há séculos colado à cadeira.

As ideias de um “Ideal Nacional” têm uma longa história na farsa política. Em Portugal há a convicção esquecida de que uma Nação não se alimenta apenas de um “instinto de conservação”. Pelo contrário, um País progressista exige os reflexos de uma ambição, de uma aspiração a uma “vida nova” suportada num “ideal” que estimule o espírito e a acção dos cidadãos. Sem um “ideal colectivo” falta aos políticos de turno o impulso, o estímulo, a visão, a obrigação de serem sempre superiores ao superlativo das suas melhores qualidades.

Na ausência de um “ideal”, a política transforma-se numa rotina cansada, a administração pública assume o perfil de uma burocracia barroca, o “parasitismo” instala-se na maximização das rendas, as “nódoas da corrupção” decoram o tecido democrático. A ausência de um desígnio comum faz com que os fins se confundam com os meios – este é o motivo pelo qual em Portugal a política é sempre um veículo de interesses e de ambições menores. A ausência de um desígnio comum tem o efeito perverso de transformar a política no meio mais elementar para alcançar a “fortuna dos políticos”, mas nunca a “felicidade de um povo”. O Plano de Recuperação e Resiliência reflecte em modo falso, calculista e tecnocrático um velho tropo da cultura política nacional.

Uma palavra para o Parlamento. A composição e a qualidade dos Deputados projectam refractadas as imagens de uma certa crise do regime representativo em Portugal. Os portugueses quando reflectem sobre o que se passa no Palácio de São Bento não sentem a soberania de uma representação política. Os portugueses observam com indiferença e cansaço os agentes do Governo, os cínicos da oposição, enfim, toda uma legião que se alimenta da pequena intriga, da baixa política, da promoção pessoal. Esta clássica separação entre o País Político e o País Real ficou demonstrada até à náusea no debate e discussão sobre o Plano de Recuperação e Resiliência. É neste vazio do regime democrático representativo que se instala o solista populista na sua vulgaridade oleográfica.

O Plano é a auto-biografia sem factos de um País sem rumo que se imagina num círculo mágico à procura de um guarda-livros.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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