Incêndios e abandono fiscal
O abandono da tributação do imobiliário rústico é um dos mais notáveis fenómenos da história recente do sistema tributário português.
Segundo os dados que a AT disponibiliza no Portal das Finanças, a receita fiscal produzida pelos prédios rústicos aproxima-se atualmente do nível zero em termos relativos. O valor fiscal agregado dos prédios rústicos representa apenas 0,25% do valor total sujeito ao IMI, correspondendo os restantes 99,75% aos prédios urbanos.
O valor fiscal dos prédios rústicos só foi atualizado três vezes no último século, em 1929, em 1963 e em 1988, esta última com escasso significado, pelo que se encontra completamente desajustado da economia atual. O valor médio de cada prédio rústico é de 112 euros, de onde resulta que a generalidade destes prédios não gera qualquer imposto.
Significa isto que o Estado se desinteressou da tributação da riqueza imobiliária rústica e considera que ela não possui valor para efeitos fiscais. E como o Estado é o maior credor e simultaneamente o maior devedor da economia portuguesa, esse desinteresse tem um peso dominante sobre os agentes económicos e é uma afirmação implícita aos proprietários de que essa sua riqueza não possui valor.
Esse abandono fiscal da propriedade rústica é uma das causas do abandono da sua rentabilização pelos proprietários, ou seja, do abandono da agricultura, que por sua vez é a principal causa dos incêndios. Quando a terra não é cultivada passa a produzir material combustível, cujo consumo pelo fogo se torna inevitável, mais cedo ou mais tarde.
A ausência de tributação do património rústico aparentemente será boa para os proprietários, mas cidadãos que não pagam impostos tenderão a ser cidadãos menos exigentes, desde logo consigo próprios, mas também com o Estado e com os vizinhos, em especial no que respeita à limpeza do material combustível.
Qualquer política pública só poderá ter sucesso se envolver a participação ativa e exigente dos cidadãos a quem se dirige, e neste caso ela só será possível se a sua propriedade for valorizada.
A propriedade envolve sempre custos privados com a sua manutenção, mas também custos públicos, com as infraestruturas de acessos, com a organização da sua disciplina jurídica e, como agora podemos constatar, com o combate aos incêndios. Mas existe também uma responsabilidade social de rentabilização da propriedade e da produção de rendimento que a todos beneficia. A propriedade imobiliária rústica é uma fonte de riqueza e um ativo estratégico para o país, porque se trata de um fator de produção. O seu abandono é um desperdício em termos económicos.
A principal função dos impostos sobre o património rural nem sequer deve ser a obtenção de receita fiscal, mas antes a de indução à rentabilização da riqueza sobre que incidem. O imposto deve refletir o custo público da propriedade e impelir o seu titular a recolher dela o rendimento necessário para financiar o seu pagamento, seja cultivando a terra, seja arrendando-a.
Naturalmente que o IMI a pagar não deve ser tão elevado que obrigue o titular a vender a sua propriedade para pagar o imposto, mas deve ser suficientemente relevante para o induzir a cultivá-la ou a arrendá-la para financiar o seu pagamento.
Esse efeito ocorreu no imobiliário urbano, com a reforma da tributação do património de 2003, que infelizmente só incidiu sobre os prédios urbanos. Também neste domínio o valor fiscal estava profundamente degradado, sendo essa uma das causas da degradação dos centros históricos das nossas cidades ao longo de várias décadas, que ainda hoje podemos constatar. A reforma de 2003 atualizou o valor fiscal de todos os prédios urbanos para valores próximos dos de mercado, o que permitiu a generalização da aplicação do imposto e uma redução substancial das taxas relativamente à anterior Contribuição Autárquica.
O fenómeno de reabilitação urbana a que estamos a assistir é um dos resultados dessa reforma, que impeliu os proprietários a colocar os respetivos prédios no mercado de arrendamento ou na sua reabilitação para venda. Esse efeito foi também facilitado pela reforma do arrendamento urbano e pela criação de incentivos fiscais à reabilitação.
É esse o caminho que necessitamos percorrer no segmento rústico do imobiliário. Todos os prédios rústicos que possuam potencial de geração de rendimentos agrícolas, silvícolas ou pecuários devem pagar IMI, porque possuem valor de riqueza. Se criarmos um sistema de tributação que incida sobre valores de mercado dos prédios rústicos, valorizaremos a propriedade rural e induziremos os proprietários a rentabilizá-la, seja pelo seu cultivo seja pelo arrendamento.
Em simultâneo poderemos criar um sistema de benefícios fiscais à produção agrícola e ao arrendamento rural, em especial nas zonas do minifúndio do centro e norte do país, idêntico ao que existe para os fundos de investimento à reabilitação urbana e ao que existe já no artigo 24.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais para a reflorestação.
E se permitirmos aos proprietários rurais a dedução do IMI no IRS ou IRC gerados pelo arrendamento ou pela produção agrícola, criaremos as condições para que o sistema fiscal se torne num dos principais instrumentos de prevenção dos incêndios e de promoção do desenvolvimento.
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