Jogar à roleta russa com a dívida pública?

O que mais preocupa são as medidas de gestão interna da dívida pública, numa lógica de maior risco, menores juros. De resto, é possível que tenha servido apenas para pôr pressão no BdP e IGCP.

Uma leitura mais atenta do relatório sobre a “reestruturação” da dívida pública, apresentado na passada sexta-feira, permite-me complementar a análise que realizei nesse dia. O Ricardo Santos também fez uma excelente análise.

Em matéria de Finanças Públicas, o que ressalta em primeiro lugar é a evolução que é apresentada para os próximos 20 anos. O relatório estima um défice orçamental nominal de -0,5% após 2019 (um pouco melhor até 2022 e assumindo -0,5% após 2022). Trata-se de um cenário ambicioso, embora abaixo das previsões apresentadas no Programa de Estabilidade há três semanas atrás (e com um défice orçamental de -0,5% dificilmente se cumpre o objetivo do saldo estrutural). Mas o relevante aqui é que, de facto, já ninguém se atreve a defender défices orçamentais. Pelo contrário, este relatório, ao invés de optar por uma política de rutura, com “reestruturação” e expansionismo orçamental, opta por cumprir as regras orçamentais. É aquilo que dizia há umas semanas: a rendição aos “conservadores orçamentais”. Ainda bem!

Das medidas apresentadas, o reembolso ao FMI afigura-se a mais correta. Tivesse sido seguida em 2016, e os 4.5 mil M€ não reembolsado antecipadamente (conforme plano do anterior governo) teriam poupado anualmente cerca de 150 M€.

A utilização de lucros do Banco de Portugal por via de redução das provisões deveria ser equacionada de outra forma. Prevê-se para o período de 2017-2019 um montante de provisões de cerca de mil M€. Ora, utilizar essas provisões como receita nesses anos é criar mais um subterfúgio para esconder a fraca consolidação orçamental. É um “novo PERES”. Sendo que os dividendos do Banco de Portugal têm aumentado significativamente por via do QE, pelo que parte desse benefício já está nas contas públicas. As provisões servem para acautelar subidas nas yields. Se a subida ocorrer e não houve provisões, quem é que vai capitalizar o Banco de Portugal?

Sugiro algo muito melhor: dado que o programa de compras terminará e as OTs se vencerão, as provisões serão depois anuladas. A anulação de provisões gera um rendimento para contrabalançar o gasto contabilístico dos anos anteriores (a falta que faz alguém de Finanças num grupo de macroeconomistas e políticos). Seria melhor deixar para 2021 os mil milhões € de rendimento e usar isso como um “lump-sum” para abater à dívida pública. Assim, não só a consolidação orçamental teria de ser feita sem uma medida “pontual”, tornando-a mais transparente, como estas provisões que são temporárias não serviriam para criar margem orçamental para aumentar a despesa (que tende a ser permanente).

Ainda sobre o Banco de Portugal, o relatório tem um corolário extraordinário sobre a sua independência, mas que está errado (e se houvesse alguém de Finanças naquele grupo teria detetado isso). O relatório diz que no Banco de Portugal é o governo que determina o nível de capital e de reservas de lucros. E depois diz: “como em qualquer empresa comercial, é o acionista que determina isso”. É um facto. Mas também é um facto que, nas empresas, o acionista não faz as contas das empresas nem determina o nível de provisões e imparidades. Isso é uma competência da administração, sob escrutínio do auditor.

Depois, há as propostas a nível europeu. A dívida ao BCE/Banco de Portugal tornar-se perpétua e a dívida aos instrumentos Europeus passar para 60 anos (ao invés de 15) e reduzir a taxa de juro de 2% para 1%. Na primeira situação, isso teria de ser aplicado a todos os países da zona Euro e violaria o Tratado da UE (além de que colocaria o controlo do balanço do BCE nas mãos dos políticos, perdendo a sua independência). Na segunda, teria de ser aplicado aos outros países intervencionados. As perdas para os instrumentos Europeus seriam avultadas. A minha estimativa seria uma perda anual de 3-4 mil M€, a ser suportada por todos os contribuintes europeus.

Nesta fase da Europa parece-me impossível. Mas além disso, nos termos do “two-pack”, prolongaríamos a supervisão da “troika” por mais 45 anos (uma vez que essa supervisão mantêm-se enquanto o país não reembolsa 75% da sua dívida). Para quem não queria a “troika”, não está nada mal!

Mas aquilo que mais me preocupa no relatório tem a ver com a gestão interna da dívida pública, nomeadamente a redução de maturidades e do valor dos depósitos. Claro que a redução de maturidades (e dos depósitos) poupa dinheiro (basta que a curva da yield esteja inclinada), mas aumenta o risco, dado que aumenta o nível anual de reembolsos. No fundo é uma estratégia de maior risco, maior retorno (sendo que aqui retorno é menos juros). Mas a redução das maturidades da dívida não é feita rapidamente. Foram precisos sete anos (entre 2009 e 2016), para subir dois anos de maturidade.

Só que aqui é que o relatório é contraditório, e dificilmente a redução das maturidades levará à poupança anunciada, por quatro motivos:

  1. Uma maior oferta em maturidades inferiores levará (assumindo que a procura é estável, o que não há nada que nos leve a pensar o contrário), a um aumento da taxa de juro, para que mais investidores se sintam interessados em investir em dívida Portuguesa.
  2. Aumentando o risco de gestão da dívida, o prémio que os investidores pedirão será maior, aumentando a taxa de juro. Além de que a taxa de juro de curto prazo, num cenário de forte investimento nessas maturidades e de depósitos reduzidos levaria a que Portugal ficasse nas mãos dos especuladores, por um falhanço numa emissão seria um desastre, conduzindo também isso a um aumento das taxas de juro de curto prazo.
  3. Uma gestão com um nível tão grande de risco dificilmente convencerá as agências de rating a tirar Portugal do “lixo”.
  4. Para se alcançar aquele nível de poupanças, é preciso começar a emitir tudo a prazos muito curtos (inferiores a dois anos, embora o relatório seja omisso sobre que novas maturidades seriam escolhidas).

Ou seja, a medida é tão contraproducente que grande parte das poupanças seriam “esfumadas” com o aumento das taxas de juro nos prazos mais curtos. Além de que seria bom os autores do estudo divulgarem toda a informação e o excel que usaram para calcular as poupanças, para aferirmos da credibilidade do estudo.

Ao contrário do que é defendido, a estratégia deveria passar por “alisar” os reembolsos em torno dos 6-8 mil M€, o que significaria, somando o défice anual, emissões de OTs de 10 mil M€/ano. Isso é fazível, mesmo em períodos de maior turbulência dos mercados (e para o qual teríamos 6-8 mil M€ de depósitos).

Agora, ter todos os anos mais de 15 bis para reembolsar, pondo as emissões nos 20 bis ano, é jogar a roleta russa. Se os mercados estiverem calmos pode passar. Mas se estiverem em turbulência, isso é uma estratégia que nos pode trazer muitos dissabores.

Quanto ao relatório, não vale muito a pena perder mais tempo com ele. É bem possível que ele tenha apenas servido para por pressão sobre o Banco de Portugal e o IGCP, facilitando a elaboração do OE/2018 (quer através das receitas do Banco de Portugal; quer através de um menor nível de depósitos, reduzindo assim a pressão financeira no próximo ano).

Mas o relatório não só não aponta caminhos que, de facto, melhorem a posição de Portugal, como no caso do pedido europeu ignora premissas importantes. Teria sido útil que explicassem que, para pedir um novo apoio europeu (mesmo na mudança de condições), o Tratado Orçamental impõe um programa de condicionalidade (ou seja, algo próximo de um novo programa da “troika”). Como seria feito esse programa? Em que condições? Tudo o que os autores do relatório pura e simplesmente esquecem. Mas teria sido mais útil usarem o tempo para elaborarem um programa desses. Dentro de um mês já ninguém se lembrará deste documento.

No fundo, o relatório mostra que grande parte da conversa fiada da extrema-esquerda já foi à vida (nada como estar no poder para nos mostrar a realidade, que falar na oposição é fácil). Já tinha sido assim na Grécia. Depois, é apenas a estratégia de ir sobrevivendo no poder: sacar umas receitas extraordinárias para ir reduzindo o défice, por em risco o refinanciamento da República e culpar a Europa. A sério, não há nada de novo?

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