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Justiça lenta é injustiça: a prescrição do ‘cartel da banca’ e os seus danos
O desfecho do caso impediu a punição efetiva das referidas práticas anti concorrenciais, transmitindo uma mensagem de impunidade que incentiva comportamentos semelhantes no futuro.
A recente decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que declarou prescrita a acusação e as multas aplicadas ao chamado “cartel da banca”, é um exemplo flagrante de como a morosidade judicial compromete a Justiça e afeta negativamente a economia – neste caso, o normal funcionamento da concorrência no mercado bancário – e a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
Depois de o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão ter confirmado, em setembro de 2024, as coimas de 225 milhões de euros a 11 bancos aplicadas pela Autoridade da Concorrência (AC) – decidindo ter ficado provado que, entre 2002 e 2013, houve “conluio” ao trocarem informações sobre créditos (spreads e montantes concedidos) e alinharem práticas comerciais, falseando a concorrência –, no dia 10 de fevereiro o Tribunal da relação de Lisboa declarou “prescrito o procedimento contraordenacional” e determinou o “arquivamento dos autos”, indicando que “a prescrição ocorreu no (…) dia 1 de setembro de 2023 ou, no limite, aplicadas as denominadas leis Covid-19, em 11 de fevereiro de 2024”.
Isto significa que, mais de dez anos passados desde os últimos ilícitos, não foi possível a Justiça portuguesa evitar a prescrição desta acusação que ficou provada, livrando os prevaricadores das multas associadas, pelo que a morosidade determinou, objetivamente, uma injustiça, confirmando a necessidade de uma reforma profunda da Justiça, incluindo a denominada ‘Justiça Económica’, a que se reporta este caso.
Os danos deste caso e de uma Justiça lenta em geral para a concorrência e para a economia em geral
O desfecho do caso impediu a punição efetiva das referidas práticas anti concorrenciais, transmitindo uma mensagem de impunidade que incentiva comportamentos semelhantes no futuro. A ineficácia da Justiça prejudica, por isso, a atuação e a eficácia da Autoridade da Concorrência, como é evidente neste caso, pois mesmo que atue bem, com foi o caso, pode ver os frutos do seu trabalho ‘deitados pela janela’ devido a uma Justiça ‘a passo de caracol’.
A este respeito, lembro também as conclusões do Position Paper nº 1 de 2025 do Gabinete de Estudos da FEP – Faculdade de Economia do Porto, de que Portugal precisa de uma maior eficiência regulatória e de menos barreiras à entrada nos mercados de produto (bens e serviços) para promover a concorrência e preços mais baixos. O estudo apresenta várias propostas nesse sentido, tendo também em vista competitividade das empresas no exterior, o potencial da economia e o bem-estar da população.
No entanto, sublinho que uma justiça funcional é um pressuposto para que as propostas do estudo possam dar o contributo desejado. De facto, de nada serve aperfeiçoar a regulação e promover regras mais claras se a Justiça depois não conseguir assegurar que são cumpridas, como mostra a prescrição do caso do ‘cartel da banca’, em que de pouco valeu a AC aplicar bem as regras da concorrência, a não ser confirmar os problemas da Justiça. Quando os processos se arrastam durante anos e terminam sem sanções, cria-se um incentivo perverso para que os prevaricadores violem sistematicamente as regras, confiantes de que nunca enfrentarão consequências reais, desde que tenham meios financeiros para tal.
A morosidade e ineficácia do sistema judicial português têm repercussões negativas significativas na economia nacional. A lentidão processual e a complexidade burocrática desencorajam investimentos, aumentam os custos operacionais das empresas e minam a confiança dos agentes económicos em geral:
- Desincentivo ao investimento: os investidores, nacionais e estrangeiros, procuram ambientes onde a resolução de conflitos seja célere e previsível. Em Portugal, a perceção de uma justiça lenta e ineficaz atua como um fator dissuasor, levando potenciais investidores a direcionarem os seus recursos para mercados com sistemas judiciais mais eficientes.
- Aumento dos custos operacionais: a demora na resolução de litígios comerciais prolonga a incerteza e os custos associados para as empresas. Processos judiciais extensos implicam despesas legais contínuas e podem resultar em perdas financeiras significativas, especialmente para as PME, que dispõem de recursos limitados. Esta situação é exacerbada por um sistema judicial que, além de lento, é considerado caro, afastando os cidadãos e as empresas dos tribunais.
- Erosão da confiança e da competitividade: a perceção de ineficiência judicial compromete a confiança dos agentes económicos nas instituições, essencial para o funcionamento saudável dos mercados. A falta de confiança na capacidade do sistema judicial para resolver disputas de forma justa e atempada pode levar as empresas a evitarem contratos ou investimentos que possam resultar em litígios. Além disso, a lentidão judicial é apontada como um dos principais obstáculos ao desenvolvimento das atividades empresariais, superando mesmo preocupações como a complexidade fiscal ou a legislação laboral.
A eficácia da Justiça é, por isso, um fator crucial para a saúde económica de um país, de modo a assegurar um ambiente de negócios confiável e promotor da concorrência e competitividade.
Os danos para a Democracia, incluindo o reforço dos argumentos populistas
O impacto de um sistema judicial ineficaz vai bem além da economia. A perceção de impunidade e de desigualdade perante a lei alimenta um clima de desconfiança nas instituições democráticas e serve de terreno fértil para discursos populistas que exploram o descontentamento generalizado.
Diz o artigo 202º da Constituição da República Portuguesa que “os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”, sendo, por isso, um pilar da Democracia, mesmo que os juízes não sejam eleitos diretamente pelo povo.
Quando os cidadãos veem que os mais poderosos – grandes instituições (financeiras, no caso da prescrição do ‘cartel da banca’) ou cidadãos influentes (incluindo políticos) e com mais meios – escapam ilesos de condutas ilegais, com prejuízo para a Sociedade, reforça-se a ideia de que existem duas justiças: uma para os poderosos e outra para o comum dos cidadãos.
Mesmo não sendo um especialista na área legal, é por demais evidente a enorme permissibilidade do nosso sistema judicial a manobras dilatórias e a valorização excessiva da forma sobre a substância – muitos processos caem devido a ‘vícios de forma’, que deveriam ser relativizados face à gravidade das acusações, a meu ver. Uma reforma profunda da Justiça certamente requer muita coisa, mas de certeza que inclui deixar de permitir o recurso a expedientes como os referidos, que deixam escapar ilesos os prevaricadores que possam pagar as custas judiciais e equipas de advogados especializados nas matérias em questão. A digitalização, incluindo o uso da inteligência Artificial, certamente serão fulcrais para a redução da burocracia e a aceleração dos processos, assim haja vontade política.
Concluo que o caso do ‘cartel da banca’ deve servir como alerta para a urgência de uma reforma na Justiça, que é um pilar fundamental da Democracia e é também crucial para o normal funcionamento da economia, como pré-requisito para uma sã concorrência, a atração de investimento e a competitividade.
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