
Le Pen, Sarkozy, Chirac, Fillon e a teoria da cabala
A justiça francesa já condenou políticos de todos os quadrantes. Já deu provas da sua independência sistémica no julgamento de casos mediáticos e evidentemente políticos.
Este não pretende ser um texto sobre o caso particular de Marine Le Pen, nem sequer tenho a pretensão de ter uma opinião definitiva sobre a sentença proferida pelo coletivo de juízes. Não conheço os factos, não conheço o enquadramento legal, não tenho competência para emitir uma opinião minimamente interessante. Com o artigo de hoje, pretendo apenas fazer uma confissão e relatar uma inquietação que esta notícia me provocou.
Quando, na segunda-feira, antes da leitura da sentença, tomei conhecimento do caso, devo confessar que o meu primeiro pensamento foi que os tribunais franceses não iriam ter a coragem de tornar inelegível a favorita às próximas eleições. Na realidade, nem sequer cogitei se Le Pen seria ou não culpada do que estava a ser julgada. O meu pensamento foi político, utilitário talvez.
Nesta sequência, quando soube que Marine, de facto, havia sido condenada e que a pena incluía a sua inelegibilidade, confesso que me perguntei se a condenação era justa, independentemente dos factos, ou se seria apenas o sistema, através da sua veia judicial, a expulsar um agente que lhe poderia fazer frente.
Não me orgulho que estes tenham sido os meus primeiros pensamentos, mas foi exatamente isto que me inquietou: se tivesse sido Attal ou Édouard Philippe (políticos do centro-direita), teria pensado o mesmo? Coloquemos o cenário novamente em front runners, se tivesse sido com Starmer antes de se tornar PM britânico, teria pensado o mesmo? O que levou um tipo moderado, como eu, a pensar desta forma em primeira instância?
Depois de refletir sobre o caso, acho que tenho algumas teorias que gostaria de apresentar.
Em primeiro lugar, é evidente que há aqui um efeito de medo. Esta foi a primeira sensação que tive ao ler sobre o caso antes da sentença. Foi com receio das consequências políticas e sociais que achei que o sistema judicial não teria coragem de ser imparcial caso a justiça estivesse na condenação. Foi a pensar nos resultados e não na correção da aplicação que senti o primeiro efeito.
Em segundo lugar, pergunto-me sobre o porquê de duvidar consciente e ativamente da justiça da decisão, mesmo que não conhecendo os factos, quando não o faria nos casos hipotéticos que coloquei, ou não o faço em casos como o de José Sócrates. Se antes temia que a justiça não fosse imparcial com o receio das consequências, acabei por ficar a temer que a justiça não tenha sido imparcial por querer as consequências. O receio da dualidade de critérios ou dependência dos órgãos judiciais existe e é exacerbado quando as consequências – a impossibilidade da candidatura de Le Pen – coincidem com a vontade que atribuímos à maioria ou ao ‘sistema’. Assim, levantam-se as dúvidas sobre se o processo se regeu pela justiça ou pelo interesse no resultado.
Por fim, pensei no porquê de serem os eleitores aparentemente mais sensíveis às questões da legalidade e da ética os primeiros a cerrar fileiras em torno dos seus líderes condenados ou em vias disso. Para isto, destacaria dois efeitos: o messiânico e o da indiferença. O primeiro está relacionado com a credulidade daqueles apoiantes cegos: os mesmos que olham para o líder como um messias ou um salvador, por natureza íntegro e impoluto. O segundo advém daqueles que contabilisticamente concluem que os benefícios das suas políticas são maiores que os custos das ilegalidades e se, no fim das contas, todos são desonestos, nada me faz deixar de votar em alguém por o ser.
Dito tudo isto, independentemente de este caso ter sido ou não bem julgado, a justiça francesa já condenou políticos de todos os quadrantes em casos e sentenças mais, ou menos, semelhantes a este que agora falamos. Já deu provas da sua independência sistémica no julgamento de casos mediáticos e evidentemente políticos.
No entanto, isto não invalida que, nos diversos processos legais movidos contra figuras de vários espectros políticos, possa haver, em alguns casos, excesso de voluntarismo por parte dos juízes ou coletivos. Idiotas úteis – às vezes, até inúteis – há em todas as funções e a justiça não é exceção. É natural que no conjunto de casos como os de Le Pen, Trump, Salvini, Georgescu, Bolsonaro alguém se tenha excedido, tentado considerações políticas e possa até mesmo ter poluído ou vir a poluir as sentenças. Contudo, a possibilidade de que isto tenha acontecido individual e desregradamente não deve abalar a nossa confiança na independência dos órgãos judiciais.
Em última instância, esta forma de pensar leva à impunidade total. Esta estratégia de descredibilização visa criar o receio, tanto na justiça, como no centrão político, das consequências eleitorais, mas não só, que condenações destas figuras podem apresentar. Usando-se da credulidade dos que os veem como messias e da indiferença dos que consideram os benefícios maiores que as ilegalidades, a prazo, o objetivo é ser intocável. Tudo ao mesmo tempo que se procura banalizar a ideia de que todos os restantes, para ali estarem, são ou foram corruptos ou fraudulentos.
Não se avizinham bons dias para as democracias. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Le Pen, Sarkozy, Chirac, Fillon e a teoria da cabala
{{ noCommentsLabel }}