Liberdade para os inimigos da Liberdade

A democracia é livre de ignorar as suas fraquezas. Só que os inimigos da democracia também são livres para explorar as fraquezas da democracia.

O título desta crónica não é um jogo de palavras nem um pronunciamento teórico nem um slogan revolucionário. É apenas o enunciado de um paradoxo liberal que não tem solução próxima ou distante. Todos os lugares-comuns ocupam as meninges da Nação com reflexões superiores e esclarecidas. Pois que sim, não se toca na liberdade. Pois que não, deve-se sim limitar a liberdade para melhor viver em liberdade. Pois que nem pelo contrário, tocar na liberdade é impor a censura e a censura não é democrática. Existe o problema de que a censura democrática tem quase sempre o temperamento das maiorias e é democrática. Existe o problema de que a censura democrática quase nunca tem o carácter dos vencidos e é censura. A teoria inventou a fórmula clássica da regra da maioria e dos direitos da minoria. Mas na profusão de discursos misturada com o interesse em controlar os termos do registo democrático, a fórmula é uma ficha nos carros de choque da grande feira das democracias.

É tido e sabido que quem estabelece os termos do debate democrático domina a natureza de uma sociedade democrática. A codificação da linguagem em democracia estabelece uma ordenação do consenso em torno das regras correntes, vigentes, respeitadas. Apenas acontece que quando não há consenso sobre as regras e sobre as virtudes do regime, a linguagem política reflecte imediatamente um conflito que é a primeira marca da subversão. Seja pela denúncia da “corrupção”, dos “tachos”, do “vender a Pátria”, dos “traidores”, dos “vendidos”, nenhum destes termos é novidade na cultura política portuguesa. Pelo contrário, os “tachos” e os “empregos públicos” são a propaganda mais gasta e persistente na política portuguesa. A Pátria já foi vendida a “grosso e a retalho” dezenas de vezes por todas as forças políticas a todas as potências estrangeiras e interesses inconfessáveis. A memória política em Portugal tem o prazo de validade do oportunismo do momento. A validade do oportunismo e a superioridade moral de todas as bancadas moralistas que praticam a imoralidade dos indignados. Portugal é a pátria política dos indignados. Pela falsa imagem de uma soberania falsa deve ser criado o Ministério dos Indignados.

Ao abrigo da secção da liberdade ainda há os insultos, a difamação, as ameaças, a calúnia. Parece que tudo foi inventado hoje no grande Parlamento da política nacional. Parece que a política em Portugal sempre foi o anfiteatro onde se ensina e se aprende as regras da boa educação e da civilidade de salão – “Vossa Excelência que me desculpe, mas Vossa Excelência não passa de um animal hipócrita e mentiroso”. Hoje ainda voam os discursos de ódio, as referências racistas, as excitações xenófobas, o politicamente correcto, o mal absoluto que enfrenta o bem absoluto negando a natureza política do confronto e da discordância.

As ideias políticas não são todas iguais, as ideias políticas não são todas benignas, mas as ideias políticas são a marca de um tempo político que não se apaga com medidas administrativas. A violência que vem à superfície na linguagem da vida política portuguesa é a marca de algo mais sério e mais profundo que não se corrige ou erradica com um dicionário. Ao reclamar-se a supremacia do discurso está a reclamar-se a imposição de uma moralidade política única e exclusiva. O grande consenso de meio século de democracia acabou com a eleição de cinquenta deputados da direita radical.

O Parlamento pretende que os deputados do Chega se comportem como tigres de papel ou então como zebras que, por terem riscas, se julgam tigres. Nem uma coisa nem outra. O Chega não é vegetariano e pretende tão-somente subverter todas as regras e todos os procedimentos para alcançar a vantagem política do momento. É da tradição da direita radical a violência de uma linguagem política que pretende chocar e abalar os alicerces das democracias liberais. A violência simbólica da linguagem serve para retirar a violência política das ruas. Ventura é a “besta das palavras” que se confronta com as “platitudes democráticas” para as provocar e destruir. Para o Chega a indignação é a marca ideológica de um regime “mentiroso” e “podre” dominado por uma esquerda na qual o partido concentra todo o ódio. No mundo do Chega, a moderação é uma traição ao sonho ideal de uma “nova sociedade”. Bem-vindos a uma realidade política que a Europa parece ter esquecido, mas que é parte de uma Europa que parece esquecida do seu passado.

As democracias têm de ter a coragem das suas convicções. Goste-se ou não se goste, mas é assim. Os insultos podem sempre atingir quem insulta. Mas para que tal aconteça o discurso político democrático deve reinventar-se para além da indignação e da retórica automática. A política não é um manual de boa educação nem a definição de um estilo literário. A democracia é livre de ignorar as suas fraquezas. Só que os inimigos da democracia também são livres para explorar as fraquezas da democracia.

 

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