Lusoponte e Fertagus: A ponte para duas concessões sobre o Tejo

As condições em que o Estado negoceia parcerias público privadas, seja a competência ou a necessidade, determinam o resultado para os contribuintes, para as empresas e para os utilizadores.

Esta semana foi notícia que a ponte “25 de abril” necessita de obras profundas de manutenção. Não sei, naturalmente, se essas obras são urgente ou se há qualquer tipo de risco para os utentes da ponte. Contudo, foi também noticia que essas obras de manutenção ficam a cargo do Estado. Isso levantou a questão de sendo a ponte explorada neste momento por um privado, num regime de concessão, qual o motivo que estes custos não fossem encargo para o privado?

Convém, assim, recordar todo o processo de concessão da Lusoponte. E vale também a pena comparar o processo com o da Fertagus (a concessão de transporte ferroviário na ponte “25 de abril”). Quando, em 1993, a Lusoponte ganhou o concurso internacional para construção da ponte “Vasco da Gama”, o projeto assentava em algo que na altura em Portugal ainda era, de certa maneira, uma novidade: uma concessão privada, em regime de Parceria Público Privada (PPP), e assente em “project finance”.

No projeto de 1993, a Lusoponte previa investir na nova ponte cerca de mil M€. Esse valor era financiado através de fundos comunitários (320 M€), de dívida bancária (420 M€, sendo 300 M€ do BEI e 120 M€ da banca privada), pelas receitas da ponte “25 abril” entre 1994 e 1998 (50 M€) e por capital próprio dos acionistas (200 M€). Refira-se que a baixa percentagem de capital próprio é frequente (é até um dos objetivos, dado que reduz o custo do capital) em “project finance”, mesmo quando não há fundos comunitários.

Para construir a nova ponte, a Lusoponte ficou com a exploração da ponte “25 de abril”. Como forma de financiar os custos e o investimento (e para evitar “oportunidades de arbitragem”), a portagem na ponte “25 de abril” teria de aumentar, até 1998, para o preço que a ponte “Vasco da Gama” iria praticar. A concessionária tinha apenas como receitas as portagens cobradas nas duas pontes, sendo que o contrato original não previa qualquer comparticipação financeira por parte do Estado, quer na fase de construção (excluindo-se evidentemente os fundos comunitários normais neste tipo de projetos), quer na fase de operação.

No entanto, o bloqueio da ponte “25 de abril” em 1994 levou a que o governo seguinte, que saiu das eleições de 1995, liderado pelo Eng. Guterres, não aumentasse mais as portagens e mantivesse a “borla” tradicional de portagens em agosto. Houve o receio político de novos conflitos. Como a economia crescia e era preciso governar “com a razão e o coração”, ninguém se preocupou muito com o fato de esta decisão ter custado centenas de milhões de euros aos contribuintes.

Entre 1996 e 2000, tivemos assim cinco acordos de renegociação. Em cada acordo, o privado pediu uma indemnização pela perda de receita decorrente do não aumento das portagens e da isenção de agosto. No total, o privado recebeu nesses cinco anos cerca de 180 M€ (sendo que o Tribunal de Contas estima que a perda de receita para o privado foi inferior a este valor). Adicionalmente aos acordos de reequilíbrio financeiro, a Lusoponte usufruiu de dois benefícios fiscais que não estavam previstos no caso-base:

  1. As receitas de exploração da ponte 25 de Abril durante a fase de construção da ponte Vasco da Gama foram consideradas como subvenções não destinadas à exploração, o que permitiu que essas receitas não fossem tributadas em IRC.
  2. A redução da taxa de IVA cobrado nas portagens, de 17% para 5%, tendo-se mantido o preço final, o que permitiu aumentar o preço líquido cobrado pela Lusoponte.

Em 2000, o governo da altura, com o ministro Jorge Coelho em funções, negociou com a Lusponte (“by the way”, detida em 40% pela Mota-Engil), um acordo global. Sobre as renegociações da Lusoponte vale a pena ler os (“arrasadores”) relatórios do Tribunal de Contas nº 31/2000 e nº 47/2001. Nesse acordo global, em que se estabeleceu uma política de tarifário, através do estabelecimento de um regime de taxas diferenciadas entre a Ponte 25 de Abril e a Ponte Vasco da Gama., ficou decidido o seguinte:

  • Pagamento de uma indemnização à Lusoponte, no valor de cerca de 300 M.€ (preços correntes), com pagamentos semestrais entre 2001 e 2019.
  • O prazo da concessão passou a ser fixo, em 35 anos, ao invés de estar condicionado a dois limites cumulativos (trafego e dívida). Esta alteração terá permitido um aumento substancial do prazo de concessão (O Tribunal de Contas estimava em 2001 um aumento entre 7 a 11 anos, com o decorrente aumento de receita).
  • Fim da responsabilidade de comparticipação nos encargos de manutenção da Ponte 25 de Abril por parte da concessionária, reduzindo assim os encargos e o risco geral do projeto.
  • Alteração à matriz de risco (reduzindo o risco do privado, apesar de se manter a rentabilidade do projeto, medida pela TIR real do acionista).
  • Novas condições de financiamento, através do modelo de reposição do equilíbrio financeiro da concessão, reduzindo assim o risco de financiamento.
  • Alteração da alocação do risco fiscal, com a compensação à concessionária se a taxa de IRC verifique um aumento superior a 1%.

No final, os meus cálculos, num trabalho relacionado com o meu Ph.D (cujo ‘paper’ pode ser lido aqui), o investimento de mil M€ deveria ter sido suportado pelo setor público em apenas 50 M€ (ou em 350 M€ se considerarmos os apoios comunitários, mas esses também se aplicam a projetos privados). No entanto, após todas estas renegociações, este projeto acabou por ter um apoio financeiro adicional, ao longo do período de concessão, que atualizado a 1994 representa 500 M€, ou seja, 50% do investimento inicial.

Mas é interessante comparar este processo com a renegociação da Fertagus. A Fertagus, que pertence ao grupo Barraqueiro, tem a concessão do comboio na ponte “25 de abril”. Iniciou a operação em 1999, tendo ficado responsável apenas pela compra do material circulante, dado que a ponte originalmente já estava preparada para o comboio, num investimento em torno dos 120 M€.

Contudo, os baixos níveis de tráfego dos primeiros anos (abaixo de 50% do previsto), permitiram à Fertagus renegociar a concessão em 2003-2004. Só que ao contrário da Lusoponte, essa renegociação foi bastante mais equilibrada.

Senão, vejamos, do lado da Fertagus a renegociação permitiu um encaixe financeiro em 2005 e 2006 de cerca de 90 M€. Adicionalmente a Fertagus prescindiu do material circulante, mas passou a ter maior flexibilidade na gestão do serviço e dos preços.

Mas do lado do Estado houve a partilha de receitas acima do previsto nas novas previsões de tráfego (o que permitiu ao Estado entre 2005 e 2010 arrecadar cerca de 20 M€), reduziu o prazo da concessão de 30 para 10 anos (terminando em 2010, tendo sido renovado até 2019, sem qualquer encargo adicional para o Estado, tendo até melhorado as condições de partilha de receitas adicionais). Além disso, a redução do risco para o privado foi acompanhada por uma redução da taxa de rentabilidade. Isto tudo, mantendo um serviço essencial para as populações e com um acréscimo de qualidade.

Refira-se que o processo de renegociação foi objeto de uma auditoria do Tribunal de Contas, onde esta entidade refere que (pg.27 do relatório 31/2005): “O acordo obtido afigura-se salvaguardar o interesse público sem comprometer a remuneração da concessionária pela respetiva prestação do serviço concessionado. Terá sido, deste modo, assegurada a coerência dos objetivos definidos pelo Estado e a minuta final do contrato renegociado…”

Em síntese, quais os motivos que levaram a que a renegociação da Lusoponte fosse bastante negativa e a da Fertagus mais equilibrada? Que lições podemos retirar para situações futuras? Haverá seguramente vários motivos, mas destaco os seguintes:

  • O primeiro é a pressão para negociar. No caso da Lusoponte, a pressão estava do lado do setor público, dado que o interesse era do governo, que não podia correr o risco político de aumentar as portagens. No caso da Fertagus, a pressão estava mais do lado do privado, que podia entrar em falência. Convém recordar que na Fertagus o grupo Barraqueiro corria um “risco reputacional” grande, de impacto nas outras concessões de transportes que detém na zona da grande Lisboa. O caso da Fertagus mostra como quando ambos os lados estão empenhados numa solução vantajosa para ambos, o resultado são projetos e concessões que criam valor seus utilizadores.
  • Outro aspeto é o risco político. No projeto da Lusoponte não foi considerado que para as populações da margem sul (sobretudo Almada), o aumento da portagem era um imposto para financiar uma ponte da qual entendiam que não retirariam qualquer benefício. Claro que o contexto político da margem sul também teve um impacto muito grande.

Em síntese, o projeto da Lusoponte acabou por ser um mau contrato para o Estado. Mas isso não decorre do contrato inicial, mas sim das sucessivas renegociações entre 1996 e 2001. Que devem servir para reforçar a importância da transparência, do controlo e do reforço de capital humano nas estruturas públicas que negociam com o setor privado, em qualquer área ou negócio. Mas, no final, houve uma transferência significativa de recursos (os tais 500 M€ que estimei), cuja uma parte foi transferência dos contribuintes para os utilizadores da ponte “25 de abril” e outra parte foi transferência dos contribuintes para os acionistas da Lusoponte.

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