Medina e a aposta para ganhar a classe média

A língua portuguesa pode até ser traiçoeira, mas às vezes é clara e reveladora. Medina fez questão em salientar que as melhorias nos rendimentos são para apoiar "muito em especial" as classes médias.

Estávamos ainda a meio de agosto quando Luís Montenegro foi à Festa do Pontal abrir as hostilidades do Orçamento do Estado para 2024 (OE2024), com propostas para a redução do IRS. No início do mês seguinte, viajou até à Universidade de Verão do PSD em Castelo de Vide para voltar à carga e acusar o primeiro-ministro e o PS de castigarem ainda mais a classe média se chumbassem essas propostas. Duvido muito que o líder social-democrata tivesse qualquer ilusão sobre a possibilidade de a maioria absoluta socialista aprovar os diplomas que apresentou e, obviamente, isso não aconteceu.

A estratégia de Montenegro deverá, portanto, ter sido dual. Por um lado, marcar a posição do partido em relação ao foco em termos fiscais, passando da redução do IRC (slogan maior na última e desastrosa campanha de Rui Rio) para o desagravamento dos impostos sobre o trabalho em altura de grandes dificuldades para as famílias devido ao combo de inflação alta e subidas de taxas de juro para combatê-la. Por outro, eventualmente provocar o PS a chumbar as propostas e depois ir fazer o mesmo, dando a oportunidade ao PSD de acusar o Governo de chegar atrasado e de copiar.

Esta segunda parte da estratégia, mais puramente política, é a que mais interessa, pois o Governo mordeu o isco. Na proposta do OE2024, apresentada por Fernando Medina esta terça-feira no Parlamento e depois em conferência de imprensa, incluiu várias propostas semelhantes às do PSD que rejeitara, como a redução das taxas do IRS do 1º até ao 5º escalão, a atualização dos escalões em 3% em linha com a estimativa do governo para a inflação e a redução do IRS Jovem. O custo total de 1.327 milhões de euros, foi provavelmente desenhado para superar com alguma distância os 1.200 milhões das propostas do PSD.

No primeiro ‘pilar’ do orçamento – reforçar rendimentos – o ministro das Finanças falou dos acordos para os aumentos dos salários e a atualização “histórica” das pensões, mas a estrela foi mesmo a descida do IRS, em especial para o que Medina chama de “classes médias”. A língua portuguesa pode até ser muito traiçoeira, mas às vezes é clara e reveladora. Medina fez questão em salientar que as melhorias nos rendimentos são para apoiar “muito em especial” essas classes médias.

Neste jogo do quem teve a ideia e quem vai gastar mais nas medidas não há muita distância, o que interessa estruturalmente é a viragem do foco para a classe média. Num primeiro momento de crise de custo de vida é claro que se tem de proteger os mais vulneráveis, e foi isso que o Governo fez. Mas num segundo período é preciso evitar que, sem proteção inicial, a classe média não fique tão exposta que se torne vulnerável também. Entrar num cenário em que o Estado tem de proteger um número cada vez maior de famílias, com recurso aos impostos de cada vez menos, é entrar num ciclo vicioso e perigoso. Os dois principais partidos portugueses estiveram bem nesse aspecto. É certo que a inflação foi um windfall para as contas públicas, mas é precisamente nessa altura que tem de ser usada para evitar males presentes e futuros.

A leitura política deste aspeto do OE2024 também é relevante. Entre os dois partidos acredito que a ligeira vantagem pode ter ficado com o PS, pois vai beneficiar de ter aplicado as medidas, enquanto o PSD fica algo marcado por não ter tido ideias além das que o Governo iria provavelmente ter (e aprovar) em qualquer caso. Dentro do PS, Medina sai fortalecido face a outros potenciais sucessores de António Costa. Foi sempre conotado mais ao centro, portanto favorável a beneficiar também a classe média, enquanto Mariana Vieira da Silva, por exemplo, é vista como a defensora da proteção especial dos mais vulneráveis. Um bocado como o ‘regressado’ Pedro Nuno Santos, mas sobre esse sebastianismo pós-Costa teremos outras e amplas oportunidades para analisar nos próximos meses.

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