Mentir e coçar é só começar

O governo escolheu a encenação, a ocultação e a mentira para lidar com o caso TAP. O que temos é uma matrioska de casos que fazem a saída de Alexandra Reis da empresa parecer um caso menor.

Como é que um governo com uma confortável maioria absoluta se colocou na corda bamba por um caso de gravidade relativa que começou com uma indemnização de 500 mil euros a uma administradora de empresa pública?

Como é que um problema de “corporate governance” – importante, mas o que estava em causa era a tomada de decisão numa empresa pública – escalou ao ponto de ter já provocado a demissão de três membros do governo e ter-se tornado num verdadeiro caso de polícia com acusações de agressões num ministério e a duvidosa intervenção dos serviços secretos?

Chegámos aqui por uma razão simples: o governo escolheu o caminho da encenação, da ocultação e da mentira nas respostas que vai dando sobre este assunto. E o que temos é uma matrioska de casos, polémicas e escândalos, ao ponto do assunto inicial – a forma como Alexandra Reis saiu da administração da TAP com uma indemnização de 500 mil euros – ser já hoje um tema menor face a todos os outros que o governo conseguiu criar para tentar apagar o rasto daquele.

A estratégia da ocultação começou logo no momento zero. Quando os ministros Pedro Nuno Santos e Fernando Medina, no dia 26 de Dezembro, assinaram o despacho onde pediam explicações à TAP sobre a saída da administradora, pelo menos um deles já estava a ocultar o essencial. Pedro Nuno Santos conhecia bem como tudo se tinha passado, sabemos hoje que acompanhou e autorizou tudo a par e passo.
O governo tentava lavar as mãos da polémica. A encenação estava montada, a peça estava já em exibição e o guião tinha que ser alimentado.

Sem surpresa, o passo seguinte tinha que seguir este rumo e o secretário de Estado Hugo Mendes participou na elaboração das explicações que a TAP deu ao pedido feito horas antes pelo seu ministério.

A mentira e a ocultação têm este problema: precisam de ser alimentadas com novas mentiras ou ocultações que façam as primeiras parecer consistentes. É uma enorme trabalheira e os resultados são altamente arriscados.

A verdade pode ser mais dura, mas dá menos trabalho e não precisa de ensaios gerais para acertar versões.

Por isso, quando em Janeiro a CEO da TAP foi chamada à Comissão de Economia do Parlamento para prestar esclarecimentos sobre o assunto sentiu-se a necessidade de reunir previamente para “troca de informações”.

Também neste novo caso – que está na origem das cenas de polícia dos últimos dias no Ministério das Infraestruturas – o governo manteve a linha da ocultação, tentando fazer crer que pouco ou nada tinha de responsabilidade nessa reunião.

João Galamba – que entretanto já tinha substituído Pedro Nuno Santos no cargo após a demissão deste quando percebeu que havia demasiadas provas factuais da sua participação no assunto – seguiu o rumo quando comunicou ao país no início de Abril que foi a TAP que pediu para participar na reunião “secreta”.

Sabemos hoje que não houve uma, mas duas reuniões prévias e que a primeira foi entre o novo ministro e a CEO, onde o governante sugeriu a participação da gestora na segunda, no dia seguinte. E claro que não foi para discutirem o futuro da aviação porque até já são públicas as notas com as perguntas e respostas que o deputado Carlos Pereira cumpriu com rigor na audição parlamentar.

Entretanto, arrancou a Comissão Parlamentar de Inquérito e o assunto não saía da actualidade. Se o governo, na sua encenação, pouco ou nada tinha feito para criar este problema havia que encontrar bodes expiatórios. Que cabeças entregar ao país numa bandeja que pudessem expiar os pecados da avareza, que indignam sempre numa economia de baixos salários?

Christine Ourmières-Widener, a CEO, e Manuel Beja, o desconhecido Presidente do Conselho de Administração, eram as respostas certas. Ganhavam ordenados na casa do meio milhão por ano, tinham responsabilidade de topo na empresa e, de uma forma ou de outra, o assunto passou-lhes pelas mãos e colocaram a sua assinatura em documentos relevantes. E, sobretudo, não eram membros do governo.

A Inspecção-Geral de Finanças fez o fato à medida desta narrativa do governo e a sua auditoria chegou às conclusões certas. E para que nada atrapalhasse este objectivo, os inspectores até prescindiram de ouvir a CEO da TAP no democrático exercício de contraditório, não fosse ela apresentar factos, documentos ou argumentos que contrariassem a missão da IGF.

Com a auditoria na mão, Fernando Medina e João Galamba despediram os dois gestores, em directo, “por justa causa”. Com base em que argumentos jurídicos? Os ministros não sabiam ainda quando os decapitaram publicamente, como hoje sabemos. Primeiro a decisão, depois a sua sustentação.

E assim nasceu mais um caso, o do célebre parecer que num dia existia e no dia seguinte já não existia.

Apesar de ser hoje claro, pela documentação enviada ao Parlamento, que o governo conduziu este processo ao contrário, começando pela sentença e só depois indo à argumentação jurídica, o Ministério das Finanças ainda teve a ousadia de fazer queixa do jornal Económico, que tinha noticiado isso mesmo. Mais uma mentira que teve perna curta.

A “justa causa” da demissão de Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja deverá ser discutida em tribunal, quando a lentidão da justiça o permitir.

Chegados aqui, quatro meses depois e com a Comissão Parlamentar de Inquérito ainda com muito para ouvir – estavam previstas mais de 60 pessoas inquiridas mas a lista deverá aumentar -, temos já vários casos que nasceram da encenação inicial do “não sabíamos de nada”. E todos eles potencialmente mais graves do que o problema que lhe deu origem, a saída de Alexandra Reis da TAP.

Estamos longe de saber como isto tudo vai acabar. Mas duas coisas são já evidentes. A primeira é que têm sido meses bons para políticos e partidos extremistas e populistas que fazem da crítica ao “sistema” o essencial dos seus programas. A segunda é que não será fácil voltar a acreditar no que quer que digam os protagonistas destas tristes histórias.

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