Mercosul e União Europeia: parceiros compatíveis?

  • Filipe Vasconcelos Romão
  • 17 Julho 2019

Para Portugal, o acordo constitui uma oportunidade. A crise ensinou-nos a exportar mais e melhor e esse efeito, felizmente, prolongou-se no tempo.

Foram necessárias duas décadas para concluir as negociações entre o Mercosul e a União Europeia. O Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai eram (e ainda são) uma excepção no continente latino-americano. Esta excepção não é obra do acaso, mas, à primeira vista, não deixava de ser estranho que a maior economia da América Latina – o Brasil – e que um dos países com ligações históricas e culturais mais profundas com a Europa – a Argentina – fossem dos últimos resistentes, num espaço que vai de El Paso à Patagónia, à abertura ao comércio com a Europa.

Não nos enganemos: o Brasil e a Argentina são donos e senhores do Mercosul. No caso da Europa, mesmo nos tempos da velha Comunidade Económica Europeia (CEE) a seis, existia uma lógica de equilíbrio em duas dimensões. Por um lado, a contraposição entre grandes Estados – França, República Federal da Alemanha (RFA) e Itália – e pequenos Estados – Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Por outro lado, as complementaridades entre os dois gigantes: França como potência política e com um sector agrícola muito forte; e a RFA como anão político, mas com uma economia altamente industrializada. A Guerra Fria também dividia a Europa geográfica e fomentava um alto nível de investimento norte-americano para manter a coesão do Ocidente.

No Mercosul, nunca se deram as circunstâncias que proporcionaram a construção europeia. Foram dois os (débeis) estímulos à criação de uma tentativa de mercado comum no Cone Sul: o regresso da democracia liberal à região, no final dos anos 80, e o bom marketing do exemplo europeu no contexto de fim da Guerra Fria. As economias argentina e brasileira, fruto de caractarísticas e circunstâncias, são proteccionistas e, mais do que complementares, concorrentes entre si. A posição mais periférica da América do Sul e a ausência de uma rede de países com elevada densidade populacional e um potencial de integração económica forte (como na Europa) levantaram as restantes barreiras ao projecto regional.

Quando olhamos para a América Latina, devemos ver mais do que uma vintena de países cujas populações falam espanhol ou português. A língua tem sido pouco ou nada relevante como factor de integração ou, sequer, de cooperação económica. Actualmente, há mais similitudes entre as economias de uma Europa com mais de vinte línguas do que entre as de uma América Latina de dualidade linguística. A grande fractura deste espaço não é, assim, idiomática, mas, grosso modo, a que proporciona a divisão em duas costas. Ao Atlântico proteccionista de brasileiros, argentinos e venezuelanos contrapõe-se um Pacífico mais aberto de chilenos, peruanos e colombianos. As circunstâncias a isto obrigaram: a ausência da dimensão brasileira e do desenvolvimento argentino obrigaram as economias do Pacífico a abrir-se mais e a permitir que o modelo de livre-comércio se impusesse sem grandes resistências.

Um dos sintomas mais evidentes do fracasso do Mercosul foi a sua crónica incapacidade de gerar consensos na política interna dos respectivos Estados-membros. Enquanto a construção europeia assentou, durante muitos anos, num consenso claro entre as principais formações políticas de cada Estado, o Mercosul sempre sofreu avanços, travagens, retrocessos e convulsões em função do alinhamento ideológico dos governos nacionais. Ao liberalismo de Carlos Menem, Fernando Collor de Melo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso sucedeu o proteccionismo e o nacionalismo económico de Nestor e Cristina Kirchner, Lula da Silva e Dilma Rousseff. E este, por agora, terá sido superado pelo liberalismo (económico) algo tosco de Mauricio Macri, Michel Temer e Jair Bolsonaro.

O acordo entre a União Europeia e o Mercosul é, assim, um enorme desafio para as duas partes. Qualquer abertura comercial implica consequências negativas para algumas corporações e agentes económicos nacionais. Os sectores mais competitivos de cada um dos lados serão, obviamente, beneficiados, mas a reconversão parcial é inevitável sobretudo para as pouco competitivas economias argentina e brasileira. Também será necessário olhar para os detalhes – letra pequena – do acordo, nomeadamente no que respeita ao gradualismo da sua entrada em vigor, às excepções e à forma como lida com as denominadas “barreiras técnicas” (muito mais difíceis de contornar do que simples impostos sobre a importação). Outro aspecto a ter em conta é o processo de ratificação e a forma como as políticas internas farão uso deste processo.

Para Portugal, o acordo constitui uma oportunidade. Contrariando todos os entraves do proteccionismo brasileiro, um conjunto de empresas exportadoras portuguesas tem conseguido vingar no Brasil. As afinidades históricas e culturais e uma comunidade enraizada (o famoso “mercado da saudade”) têm conseguido vencer tarifas alfandegárias, impostos federais, estaduais e municipais. Recentemente (Abril deste ano), tive oportunidade de ser testemunha da pujança do sector alimentar português numa das principais feiras de retalho do Brasil, organizada pela Associação Paulista de Supermercados (APAS) em São Paulo. Vinhos, bacalhau, chocolates ou azeites portugueses destacavam-se mesmo em comparação com produtos como os espanhóis ou os franceses. A crise ensinou-nos a exportar mais e melhor e esse efeito, felizmente, prolongou-se no tempo.

O potencial deste acordo não se esgota na possibilidade de vender mais barato aos brasileiros e, desta forma, poder concorrer em condições ligeiramente mais próximas das dos argentinos ou dos chilenos (com quem o Mercosul já tem um acordo de livre-comércio). Se aplicado com seriedade, poderemos estar perante um novo modelo de relacionamento que altere definitivamente o quadro mental dos agentes económicos e que crie oportunidades para as empresas dos dois lados do Atlântico. Este efeito poderá ser importante para despertar atenções para uma área ainda pouco associada a boas oportunidades e o Brasil poderá ser uma verdadeira porta de entrada na Argentina, no Uruguai e no Paraguai.

Todo o saudável ruído em torno deste futuro acordo pode ainda alertar os mais distraídos para os acordos que já o são no presente: a EU (e por extensão Portugal) já conta com cinco tratados de livre-comércio com a América Latina que abrangem quase 20 Estados e 300 milhões de consumidores.

Nota: O autor escreve ao abrigo do anterior acordo ortográfico

  • Filipe Vasconcelos Romão
  • Presidente da Câmara de Comércio Portugal – Atlântico Sul e professor universitário

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