Montepio, idoneidade e “cavaleiro” legislativo

  • Fernando Ribeiro Mendes
  • 26 Fevereiro 2019

Os poderes públicos, sem honra nem glória, caem na situação que, não fossem as potenciais consequências gravíssimas para o Montepio e o sistema financeiro português, seria simplesmente ridícula.

A opinião pública informada não terá ficado surpreendida ao saber que o Banco de Portugal confirmou, enfim, a falta de idoneidade profissional do Presidente do Montepio Geral, decidindo sancioná-lo com coima.

Quais as consequências desta decisão para a vida da mutualidade?

A publicação, em agosto do ano passado, do Código das Associações Mutualistas veio submeter as grandes mutualidades à regulação da Autoridade de Supervisão dos Seguros e Fundos de Pensões (ASF), sujeitando-as ao regime legal da atividade seguradora. Nomeadamente, passou a ser exigível, nos termos do artigo 138.º do Código, o registo prévio e a avaliação periódica da idoneidade dos seus responsáveis em vigor no setor segurador e analogamente ao que se verifica na banca. Com o despacho conjunto n.º 11392-A/2018 dos Ministros das Finanças e da Segurança Social, de 29 de novembro, o Montepio Geral ficou sujeito a esse regime antes das recentes eleições associativas, pelo que se aplicaria já aos eleitos em 7 de dezembro.

A solução para a situação resultante da condenação do banco central, que já se antecipava há tanto tempo, pareceu então ter ficado garantida. O supervisor poderia e deveria intervir nesta altura, avaliando a idoneidade para o exercício de funções dirigentes na atividade financeira. A confiança dos mais de 600 mil associados e de todos os cidadãos nas instituições sairia reforçada e a idoneidade da gestão dos três mil milhões de euros dos fundos mutualistas seria salvaguardada.

Será assim? Infelizmente, em vez disso, está instalada a confusão nesta matéria porque, em paralelo à revisão do código das mutualidades, foi desencadeada uma operação legislativa que poderá deixar o Montepio Geral indefeso durante mais 12 anos, perante as consequências da falta de idoneidade da sua liderança. O que se passou?

A 19 de junho de 2018, ainda antes de publicado o novo código das mutualidades, deu entrada na AR a proposta de lei n.º 138/XIII, que transpõe para a ordem jurídica interna uma diretiva europeia sobre a distribuição de seguros, com o objetivo de reforçar a proteção dos tomadores de seguros, segurados e beneficiários de produtos de seguro. Nesta proposta foi inserida a norma que adita o artigo 33.º-A à Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro – regime jurídico da atividade seguradora -, explicitando que o mesmo se aplica também às mutualidades.

Não é inédito usar-se outros diplomas para adequar situações fora do seu âmbito direto, introduzindo neles disposições que a gíria parlamentar denomina “cavaleiros” (frequentes nas leis do Orçamento do Estado), assim economizando tempo e antecipando efeitos. No caso vertente, a própria ASF, obrigatoriamente ouvida no processo legislativo subsequente, estranhou tal inserção, anotando que se verificava “existir uma duplicação em relação ao já previsto [no Código das Associações Mutualistas] no respetivo artigo 138 n.º 1.”

A apreciação da ASF foi, no entanto, menos rigorosa. Com efeito, a mão que introduziu tal norma na proposta de lei fê-lo acrescentando-lhe uma especificação, relativamente ao código mutualista, de intenção pelo menos duvidosa.

A Lei n.º 7/2018, de 16 de janeiro, que resultou a final deste processo, adita efetivamente o referido artigo 33.º-A à Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro, com a especificação equívoca estipulando que as associações mutualistas “que preencham os requisitos definidos no artigo 136.º do Código das Associações Mutualistas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 59/2018, de 2 de agosto, findo o período transitório neste estabelecido [sublinhado nosso], estão sujeitas, com as devidas adaptações” às disposições do regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora em vigor no setor (entre elas o registo prévio e a avaliação periódica da idoneidade dos responsáveis).

Que período transitório é este que não está referido (e bem!) no artigo 138.º do Código das Associações Mutualistas? É o período de 12 anos findo o qual as associações mutualistas existentes ficarão plenamente sujeitas ao regime dos seguradores.

Estes 12 anos parecem totalmente justificados para a adaptação às exigentes regras de solvência do sector segurador e, possivelmente, outros aspetos do regime jurídico da atividade seguradora. Mas que justificação haverá para adiar por 12 anos a avaliação da idoneidade dos responsáveis mutualistas eleitos depois da entrada em vigor do Código, que o cavaleiro legislativo parece ter pretendido? Ter-se-á querido, através deste cavaleiro legislativo, salvaguardar a continuidade em funções do visado pela decisão do Banco de Portugal?

A maioria de deputados que aprovou no dia 21 de dezembro passado esta lei, do PS e do PSD, acompanhados pelo deputado não inscrito Trigo Pereira, deve uma explicação aos associados do Montepio e ao País. Como puderam ser os aparentes “peões” de tal cavaleiro legislativo cujas eventuais consequências, a serem aceites, são politicamente cínicas e moralmente indecentes, agravando ainda mais o risco sistémico que ameaça os aforradores mutualistas?

Ao cavaleiro (legislativo) de triste figura já se agarrou sem cerimónias o Presidente da ASF, que veio declarar não ter competências para avaliar a idoneidade dos responsáveis mutualistas! O escandaloso desta situação insólita obrigou a comunicado conjunto dos Ministros das Finanças e da Segurança Social afirmando outra interpretação dos normativos aplicáveis ao Montepio, segundo a qual a ASF está já em condições de avaliar a idoneidade do presidente da mutualidade, à luz do artigo 5.º-f) do Decreto que aprovou o Código das Associações Mutualistas.

Inegável é que, com toda esta confusão, a abalada confiança no Montepio sofre mais um rude golpe. Ao mesmo tempo, os poderes públicos, sem honra nem glória, caem na situação que, não fossem as potenciais consequências gravíssimas para o Montepio e o sistema financeiro português, seria simplesmente ridícula, discutindo entre si o que deveria ter ficado clarinho como água desde início, e assim ficando com toda a responsabilidade pelo que possa suceder de agora em diante nesta grande mutualidade.

  • Fernando Ribeiro Mendes
  • Economista. Dirigente do Think Tank “Cidadania Social”

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