Na cratera do vulcão do ódio

Sobra a guerra nas sombras entre os racionais e a matilha do ódio, da acefalia, do ruído, da ignorância.

Nos dias de hoje, é quase hilariante pensar que, em 2008, uma campanha francesa de segurança rodoviária apresentava o icónico estilista, Karl Lagerfeld, como habitualmente de smoking e óculos escuros, de colete amarelo por cima da “toilette”, espalhado por milhares de outdoors em todo o país com o seguinte lema: «é amarelo, é feio e não combina com nada. Mas pode salvar-lhe a vida». Agora, esse colete é apenas um símbolo de revolta, de desagregação, de instabilidade, de insegurança.

Não é apenas um fenómeno de fúria contra Macron. É algo que subjaz a uma retórica universal de desalento de largas franjas populacionais, cansadas da precariedade, do desemprego, sentindo o medo e expelindo-o como combustível contra a classe política, o sistema partidário e o equilíbrio institucional dos poderes que mantiveram a Europa e o mundo em paz nos últimos 70 anos. Já não há esquerda nem direita, ideologia é coisa chata e que não se adapta a tempos de selfies e redes sociais vorazes no consumo da novidade ao segundo, a classe média vai sendo mitigada, crescendo o fosso entre pobres e ricos, os mecanismos de supervisão, garantes de uma sociedade democrática como a comunicação social, vão sendo asfixiados, e sobra a guerra nas sombras entre os racionais – a imensa minoria que por vezes prefere, atónita, resguardar-se no silêncio – e a matilha do ódio, da acefalia, do ruído, da ignorância.

Para os nossos tempos, algo sombrios e por vezes incompreensíveis e irracionais, é bom recordarmos duas personagens. Willie Stark, inesquecível Broderick Crawford, em “All the King`s Men” (A Corrupção do Poder), de Robert Rossen; e “Elmer Gantry”, Burt Lancaster estrelando a fita de Richard Brooks que em português se intitulava “O falso profeta”. Ambos eloquentes, sedutores, sagazes na captação do “zeitgeist” e no conhecimento da natureza humana. Manipuladores de oratória tonitruante, oportunistas, amorais, lobos em pele de cordeiro. O primeiro, o retrato do político anti-político, de voz grossa contra a corrupção do sistema, vestindo o discurso do povo e que, posteriormente, se revela um corrupto autoritário. O segundo, medíocre caixeiro-viajante que se torna pregador de iluminada palavra divina e que, como adivinham, nada tinha de puro e era um mero charlatão.

Em 2018 vimos surgir uma série de indivíduos a navegarem no mar do populismo e das falsas aparências, que dizem o que a multidão sem rosto quer escutar. Vociferam rude contra o que existe mas não têm mais do que uma mão cheia de nada como solução. Na maior parte dos casos, dissimulam apenas a rapacidade, a cobiça, por alcançar o poder, porque, depois, logo se verá. Ora, é neste caminho de insanidade onde, por exemplo, o líder, Donald Trump, do país mais poderoso do mundo, segundo o “Washington Post”, fez 5 mil afirmações falsas em 601 dias como presidente, que a globalização da ira e do rancor se vai implantando como uma nova Internacional. No Brasil tomou posse um baluarte de tudo o que descrevo e só um cego não vê que aquele “capitão”, um deputado de quinta fila durante décadas, Jair Bolsonaro, não tem sequer qualidade, cultura, bom senso para gerir um pequeno condomínio. Um homem racional, sensato, o político brasileiro Ulysses Guimarães, já desaparecido, dizia que “não se pode fazer piquenique na cratera do vulcão». Infelizmente, o mundo está a deixar mergulhar-se na cratera do vulcão do ódio.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

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