A indiferença perante a imagem de uma criança entre a vida e a morte numa ambulância numa qualquer via rápida suburbana é a marca da crise do Regime.

A vida política é a página completa de um tablóide. Com muitas imagens e pouco conteúdo, a política portuguesa está transformada na violenta banalização do banal. Discutem-se as intrigas ao fim da rua quando o mundo se transforma em direcção a um futuro imprevisível e perigoso. Discutem-se os egos medíocres quando o mundo revisita o passado à procura das lições que a História contém mas que não revela.

Sem vestígios do futuro ou sombras do passado, o país vive a ilusão de um presente eterno que é o maior sintoma de uma nação parada no tempo. No entanto, a “transformação” do país está em curso com um conjunto de gestos falsos que apontam em todas as direcções logo sem a mínima direcção. O Governo triunfa sobre o vazio, o vazio triunfa sobre a vontade e Portugal percorre tudo à superfície para não deixar a marca das ideias que não existem. Na verdade, em Portugal são tudo sonhos e negócios. De sonhar ninguém se cansa porque sonhar é esquecer e esquecer não pesa nas consciências. Portugal em sonhos consegue tudo.

E esta introdução vem a propósito de tudo. O país está tomado pela questão da imigração, da nacionalidade, das milícias da extrema-direita, das listas de nomes de crianças no Parlamento, da evidência da liberdade de expressão onde não há liberdade nem existe expressão. A política está absorvida pelos helicópteros que não existem na saúde, pela violência doméstica, pela violência obstétrica, pela privatização da TAP, pelos polícias suspeitos de tortura que ficam em prisão preventiva, pelo julgamento de uma humorista, pela discussão dos limites do humor, pela divagação sobre o discurso do ódio, pela discussão dos limites do ódio na moldura constitucional nacional.

Ridículo é Portugal alugar helicópteros que não existem para voar no céu dos sonhos dos políticos em modo social. Ridículo é Portugal vender aviões que existem para voar no céu dos sonhos dos políticos em modo liberal. Transportar doentes e transportar turistas tem a mesma ordem de prioridade e de competência. Não podemos esquecer que na TAP viaja a diáspora quando não tem lugar nas companhias low cost. E convém sublinhar que na TAP também viajam imigrantes de todo o mundo, sobretudo do Brasil e das antigas colónias africanas. Se pudessem chegar a Portugal de jangadas de borracha com motores fora de bordo, o Governo privatizava as jangadas e alugava os motores. Mas o Atlântico não é a Mancha e Portugal ainda é o rosto com que a Europa encara o mundo.

O julgamento de um antigo Primeiro-Ministro está transformado no julgamento da justiça. A política pressiona a justiça e a justiça fala alto por debaixo da mesa. O verdadeiro julgamento dá-se à porta do tribunal em conferências de imprensa selvagens a lembrar a justiça popular ou a resistência ao arbítrio dos tribunais plenários. Subitamente as conferências de imprensa deixam de se realizar porque os jornalistas não gostam de ser contrariados nas perguntas que fazem, mas sobretudo nas respostas que recebem. A questão da liberdade de expressão já não representa a pedra de toque da democracia. Afinal as conferências de imprensa para serem verdadeiramente “livres” implicam a conjugação das vontades entre quem pergunta e quem responde. Prevalece quem pergunta. Nesta leitura, a conferência de imprensa está transformada num interrogatório formal e as perguntas representam a essência da democracia e do interesse público. A censura e a polícia política funcionam de acordo com a mesma lógica.

O julgamento não serve a ninguém, mas presta um óptimo serviço à degradação das instituições. A estética do artifício e do espectáculo são a expressão maior das audiências. A verdade prejudica a expressão da mentira. Se algum dos intervenientes soubesse toda a verdade nunca a poderia contar nestas condições. O julgamento está transformado numa simulação da realidade, num romance de uma história que nunca foi, num romance contado em forma de narrativas cruzadas. Nesta guerra a verdade morreu e já ninguém é capaz de falar em verso.

No país onde as crianças são uma espécie em extinção, começam a nascer crianças em ambulâncias depois de percorrerem as estradas nacionais à procura de maternidades fechadas. A cotação das crianças está em baixa. A imigração resolve o problema. É a teoria da grande substituição em virtude do caos no culto da religião da República chamado SNS. Algumas crianças morrem por falta de assistência. A cada criança anónima que não nasce, o país fica mais pobre para um futuro que não promete.

A comparação impõe-se quando a comoção nacional voa pelo mundo quando morre um herói da Selecção Nacional. A indiferença perante a imagem de uma criança entre a vida e a morte numa ambulância numa qualquer via rápida suburbana é a marca da crise do Regime. Quando nascer é ser herói está tudo dito sobre o país que é Portugal.

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