Não há consenso sobre o euro. E sobre o BCE?

BCE tem vindo a distorcer o sistema de preços do mercado de dívida. Criou uma desconexão permanente entre os fundamentais das economias e as taxas de juro associadas às dívidas soberanas.

Ao que parece, os países membros da zona euro não conseguem entender-se quanto ao fortalecimento da arquitectura institucional da moeda única. A ideia do orçamento próprio para a zona euro continua sem gerar especial entusiasmo, e o mesmo parece suceder com a união bancária. A Alemanha, que nestas matérias tem sempre a última palavra, está dividida, ou talvez até essencialmente contra, o que também não ajuda. Por um lado, Merkel parece concordar, ainda que de forma muito mitigada, com algumas propostas de maior integração que têm vindo a ser propostas por Macron. Por outro lado, a opinião pública alemã vai resistindo à cedência de novos poderes a entidades externas que, a prazo, lhe fugirão ao controlo. Neste particular, o que aconteceu nos últimos anos com o Banco Central Europeu (BCE) foi revelador: distorceram-se os princípios do espírito fundador de Maastricht e, hoje, o BCE tornou-se o grande financiador dos Estados europeus.

O BCE anunciou há dias que vai reduzir o ritmo mensal de aquisição de activos financeiros de 30 mil milhões de euros por mês para 15 mil milhões a partir de Outubro deste ano. A ideia será descontinuar os programas no final do ano. O BCE carrega neste momento no seu balanço cerca de 2,5 triliões de euros (utilizando a escala longa) em instrumentos adquiridos desde 2015.

No caso de Portugal, só no PSPP (“Public Sector Purchase Program”), o mais emblemático dos quatros programas em curso, o BCE acumula activos no valor de 33 mil milhões de euros – o que representa mais de 20% da dívida pública portuguesa que é transacionável em mercado. Recorde-se que, no âmbito dos limites previstos no PSPP, o BCE está limitado a uma quota máxima de 33% dos valores emitidos através dos activos adquiridos. Draghi e companhia estão igualmente limitados pela regra do PSPP que lhes veda a compra de activos em mercado primário, sob risco de violação do artigo 123 do Tratado da União Europeia.

O anúncio da redução dos estímulos acontece numa altura em que a Grécia acaba de sair – mas só no papel – das mãos da troika. Temos, portanto, três dinâmicas paralelas:

  • a) redução de estímulos por parte do BCE.
  • b) saída da Grécia do programa de resgate e em breve um teste aos mercados.
  • c) propostas modestas no âmbito da reforma da zona euro.

Ou seja, está-se a baixar a guarda numa altura em que o ente mais frágil da união monetária é lançado aos leões e sem que a arquitectura institucional da moeda única esteja preparada para resistir a choques abruptos. Ou muito me engano ou isto tem tudo para correr mal. O problema é que, se correr mal, a emenda poderá ser pior que o soneto. Porquê? Porque o BCE regressará de imediato às medidas de emergência e de forma cada vez mais agressiva. Será o retomar do magnífico “bluff” de Draghi que na ausência de uma federação europeia não passa disso mesmo – um “bluff”.

De qualquer modo, convém não desvalorizar o arsenal de instrumentos do BCE. Com a inflação abaixo de 2% – sobre isto escreverei noutra ocasião –, o BCE tem mandato e, sobretudo, jogo de cintura para fazer o que bem entender. E assim fará porque sem euro não haverá certamente BCE. Mas é um caminho que vai contra a doutrina económica dominante na Alemanha desde o pós-guerra.

Trata-se de uma doutrina marcada pelo chamado ordoliberalismo de Walter Eucken e da escola de Friburgo. Nesta escola de pensamento, o Estado tem como função promover a “ordem” no seio da qual se desenvolve o liberalismo e a concorrência perfeita como políticas económicas. É uma espécie de liberalismo disciplinado que tenta conciliar o bem individual com o bem colectivo, dois tipos de bens que, segundo os mestres daquela escola, nem sempre coincidem. Os ordoliberais rejeitam deste modo a mão invisível de Smith. Mas, acima de tudo, rejeitam bloqueios à concorrência.

Nas palavras de Walter Eucken, a concorrência perfeita é “uma determinada forma de mercado que pode ser definida em termos exactos e não deve ser confundida com o laissez-faire. (…) Na concorrência perfeita, no entanto, não pode haver bloqueio. Oligopólios ou monopólios de oferta ou da procura praticam estratégias de mercado, algo que na concorrência perfeita não existe. A concorrência perfeita não consiste no combate corpo a corpo, mas desenrola-se numa direcção paralela. Não é concorrência para impedir ou para prejudicar, mas sim concorrência através da eficiência” (“Princípios da Política Económica” de Walter Eucken, edição Fundação Calouste Gulbenkian, p. 447).

Eucken propõe-nos assim um enfoque na ideia da eficiência enquanto móbil da concorrência e da competitividade. A ideia de que a concorrência pela eficiência é justa. Ao mesmo tempo, o bloqueio, sendo contrário à concorrência, deve ser desmantelado pelo Estado.

Contudo, para os ordoliberais, entre as regras que o Estado deve promover, há uma que se afigura primordial: fazer [da] “construção de um sistema eficiente de preços de concorrência perfeita o critério essencial de qualquer medida de política económica. Este é o princípio-base jurídico da constituição económica (…) o mais importante é tornar o mecanismo dos preços capaz de funcionar. Todas as políticas económicas que não consigam fazer isto fracassam. (…) O princípio de atribuir à política monetária uma categoria especial no âmbito da política económica tem – como mostrámos – um sentido de política de ordem. Agir de acordo com este princípio não significa – para usar uma designação mais tosca – sacrificar a economia à moeda. Antes o contrário é válido: uma certa estabilização do valor da moeda torna possível introduzir um instrumento de direcção útil no processo económico” (pp. 460-464).

De regresso ao BCE, é evidente que a sua acção no mercado da dívida soberana tem vindo a distorcer o sistema de preços daquele mercado. Criou uma desconexão permanente entre os fundamentais das economias e as taxas de juro associadas às dívidas soberanas. Em certo sentido, o BCE é hoje uma espécie de oligopolista; ele açambarcou o mercado e manipula-o (“cornering the market”). É aqui que, provavelmente, radica a desconfiança alemã.

As taxas de juro estão bloqueadas abaixo do que desejariam os aforradores germânicos, e bloqueada está a concorrência entre os países da zona euro tendo por base o critério da eficiência. Resulta daqui a percepção de que aqueles que não fazem por serem eficientes (ou que deliberadamente fazem por não serem eficientes!) acabam beneficiados. Não é um corolário inteiramente coerente, porque, embora os “spreads” entre os países do euro tenham baixado significativamente em face dos programas do BCE, a Alemanha em termos nominais foi o maior beneficiário dos ditos programas. Há, pois, uma barreira cultural, para além da barreira económica, que destrói pontes em vez de as construir. Haverá forma de sair disto?

Escrevia há dias Zaki Laidi no Project Syndicate (“The German Rules Trap”) que o ordoliberalismo alemão não seria compatível com a solidariedade e a interdependência necessárias ao funcionamento do euro. Em seu entender, a Alemanha, para fazer parte da solução, teria que despir a sua própria pele. Parece-me pouco provável. Mas na mesma publicação, outro colunista, Dani Rodrik, questionava quão democrático seria o euro (“How Democratic is the Euro?”). Este académico argumentava que o verdadeiro problema estava na falta de controlo democrático sobre os objectivos de política monetária prosseguidos pelo BCE. É um argumento que colhe a minha simpatia. A este respeito, saliento: a criação de um orçamento europeu, bem como a utilização do mecanismo europeu de estabilidade como garantia última da união bancária, provavelmente agravariam a falta de escrutínio dos eleitorados nacionais sobre os poderes reforçados das entidades supranacionais e/ou tecnocratas. E este não é o caminho.

Nota: O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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