O Almirante Darlan e o poder

A história do Almirante Darlan é uma hipérbole da ambição desmesurada. Já não há Nazis, mas continua a haver “pequenos Darlans”, que não têm pudor de colocar de lado os princípios.

A história mais interessante e relevante que alguma vez li sobre como a ambição de poder pode cegar uma pessoa é a do Almirante Darlan. Nas suas memórias da 2ª Guerra Mundial, Churchill conta a história deste Almirante Francês. Lembro-me que quando li as memórias de Churchill, tinha eu então 17 ou 18 anos, fiquei admirado como Darlan se deixou cegar pela sua ambição de poder.

A história do Almirante Darlan conta-se rapidamente. Darlan era o Chefe da Armada Francesa em 1940. Tinha comandado a Armada Francesa durante a década de 30, modernizando-a. Chefiava assim aquela que seria a 4ª maior Armada do mundo (depois da Royal Navy, da Marinha dos EUA e da Marinha Nipónica). Tinha uma Marinha de Guerra superior à da Alemanha Nazi (que não se esqueça que contava com navios de grande porte como o Bismarck, o Tirpitz, o Scharnhorst e o Prinz Eugen, além de centenas de submarinos U-boat que quase ganharam a batalha do Atlântico, quase subjugando o Reino Unido pela fome e falta de abastecimentos).

Darlan era assim, em 1940, quando a Alemanha invadiu a Bélgica, Holanda, Luxemburgo e França, derrotando os Franceses em 6 semanas e obrigando os Britânicos a fugir em Dunkirk, um dos militares mais respeitados da França (talvez só atrás de Petain, o herói de Verdun em 1917). Pelo contrário, De Gaulle era um jovem Coronel, promovido a General nas seis semanas de combate contra a Alemanha.

Churchill conta que nessas seis semanas voou 3 vezes até França. Aí reuniu com o governo Reynaud, com Petain e com Darlan. O Primeiro Ministro Britânico disse então ao Almirante Francês:

  • “Se a França capitular, a Armada Francesa não pode cair nas mãos da Alemanha Nazi. Se tal acontecer, ambas combinadas terão um poder naval similar ao da Royal Navy. Eu sei que você é um Francês patriota, mas também anti Inglês. Quando nos conhecemos, num jantar da embaixada em Londres, você a primeira coisa que disse no seu discurso foi que o seu bisavô tinha morrido em Trafalgar” (a batalha em que Lord Nelson, que também morreu aí, derrotou a armada de Napoleão, impedindo de vez o bloqueio continental e a invasão da Inglaterra).

Churchill continuou dizendo:

  • “Se a França capitular, você fuja com a Armada para o Canadá. Aí, estará a salvo de ataques e terá todas as condições de manutenção e treino dos navios. Terá também ao seu dispor todos os ativos Franceses no estrangeiro, a começar pela enorme reserva de ouro que a França tem nos EUA. E o império colonial Francês seguramente que o seguirá e apoiará”.
  • “Dentro de alguns anos regressará para libertar a França, à frente da 4ª Armada do mundo e como líder incontestado da França livre”.

Que coisa extraordinária! Darlan tinha a oportunidade de servir o seu país e com isso alcançar a glória e o prestígio.

Darlan podia ter sido muito mais do que De Gaulle foi. Tinha muito mais prestígio e autoridade. E teria uma força militar formidável, ao contrário de De Gaulle, que levou consigo para Inglaterra uns poucos milhares de homens.

Mas Darlan não fugiu com a Armada para o Canadá. Pelo contrário, ficou em França. E, receando que a Armada Francesa caísse nas mãos dos Alemães e fosse usada para combater a Royal Navy e para preparar a operação “Leão Marinho” (o plano Alemão para invadir as ilhas Britânicas), Churchill deu aquela que mais tarde classificou como a sua “decisão mais difícil de sempre”. Bombardeou a Armada Francesa em Mers-el-Kébir (o resto da frota Francesa do Mediterrâneo seria mais tarde afundada em Toulon).

Churchill conta que em 1944, quando a França foi libertada, perguntou a um Francês se ele sabia a razão pela qual Darlan não tinha fugido com a Armada para o Canadá.

O interlocutor Francês de Churchill disse-lhe: “sabe, fiz essa mesma pergunta a Darlan no dia seguinte ao armistício de 1940 com os Alemães: então você não prometeu ao Churchill que fugia com a Armada?”

A resposta de Darlan é fantástica, porque mostra como a ambição de poder o cegou totalmente, ao ponto de se tornar um traidor e de não perceber que tinha diante de si a hipótese de se tornar o grande herói do século XX Francês.

Darlan respondeu:

  • “Sim, eu prometi fugir com a Armada, mas eu agora sou ministro”!

Extraordinário! Pelo simples lugar de ministro Darlan traiu o seu país, pactuo com os Nazis e perdeu a oportunidade de ser o grande herói Francês do século XX.

Sobre isso, Churchill escreveu nas suas memórias:

  • “Como são fúteis as maquinações humanas em proveito próprio. Raras vezes houve exemplo mais convincente disso. Bastava a Darlan zarpar rumo a qualquer porto fora de França para se tornar senhor de todos os interesses Franceses fora do controlo Alemão. Ele não teria chegado, como o General De Gaulle, apenas com um coração indomável e um punhado de espíritos solidários. Teria levado consigo a quarta Marinha do mundo, em que os oficiais e praças lhe eram pessoalmente dedicados. Darlan ter-se-ia tornado o líder da resistência Francesa. Todo o Império Francês teria cerrado fileiras em torno dele. Nada o poderia impedir de ser o libertador da França. A fama e o poder que ele tão ardentemente desejava estavam ao seu alcance. Em vez disso, ele atravessou 2 anos de um mandato ignominioso que acabou com uma morte violenta, uma sepultura desonrada e um nome execrado pela França e pela sua Marinha, que ele até então tão bem servira“.
  • “Poucos homens pagaram mais caros pelos seus erros de julgamento e de falta de carater que o Almirante Darlan. A ambição estimulou os seus erros”.

Lembro-me frequentemente desta história. Sempre que vejo um político a colocar à frente dos seus princípios e do interesse nacional a sua própria ambição e os seus próprios interesses, lembro-me do Almirante Darlan. Claro que esta história é uma hipérbole da ambição desmesurada. Felizmente, hoje não há nem a glória de vencer os Nazis nem a desonra de se aliar a eles. Mas continua a haver “pequenos Darlans”, que por um momento imediato de glória e poder não têm pudor de colocar de lado os princípios e os interesses maiores que eles próprios.

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