O coronavírus e a economia

A economia mundial já estava em desaceleração antes do coronavírus ter aparecido, a questão é que nem todos os países têm a mesma margem orçamental.

À medida que o coronavírus galga fronteiras, evidenciando a relativa ineficácia da quarentena como forma de o combater, há quem questione até que ponto o vírus é passível de ser contido sem uma vacina eficaz. Do que já se sabe sobre o vírus, com base na experiência chinesa, é expectável que cerca de 5% das pessoas infectadas pelo vírus venham a ter necessidade de cuidados hospitalares intensivos (dados citados pela revista “The Economist” em “The virus is coming”). Mas o problema maior não é esse.

O problema maior é mesmo o número de pessoas que serão infectadas pelo vírus por esse mundo fora. A este respeito, de acordo com a análise de um professor de epidemiologia da Universidade de Harvard, Marc Lipsitch, citado pela revista “The Atlantic” (em “You’re Likely to Get the Coronavirus”), nos próximos doze meses é possível que entre 40% a 70% da população mundial venha a contrair o vírus que causa o COVID-19.

Enquanto o mundo espera pela vacina, os efeitos sobre a economia vão-se sentindo. Segundo a OCDE, que há dias reviu em baixa as estimativas de crescimento económico para 2020, a economia mundial crescerá apenas 2,4% este ano. Todavia, se a pandemia durar muito para além do previsto, a OCDE antecipa então um pior cenário de apenas 1,5% em 2020. Será o pior ano desde 2009.

Em resposta, um pouco por todo o mundo, os governos vão discutindo políticas públicas de apoio orçamental e os bancos centrais vão preparando novos estímulos monetários. A Reserva Federal norte-americana, talvez o único banco central, entre os maiores bancos centrais do mundo, que ainda tinha alguma margem para descer as taxas de juro, já tratou de o fazer. Baixou a taxa de juro directora para o intervalo de 1,0%/1,25% e a pressão é no sentido de continuar a baixar. Trump, em ano de eleições e com a economia a cair, não largará o Twitter.

O primeiro impacto desta crise de saúde pública é do lado da oferta. A economia chinesa, que continua a ser a fábrica do mundo, está a operar muito abaixo da sua capacidade e o índice que regista as encomendas industriais na China atingiu recentemente o valor mínimo desde que é publicado. Há já quem anteveja a possibilidade de a economia chinesa ter entrado em contracção (ou seja, uma evolução negativa em cadeia) no primeiro trimestre deste ano. Seria a primeira vez que tal sucederia desde a revolução cultural.

A consequência imediata será, pois, a redução da oferta, a disrupção das cadeias de valor no comércio internacional e, possivelmente, alguma inflação em determinados bens e serviços mais afectados pela quarentena a que milhões de pessoas foram forçadas nas últimas semanas na China.

O impacto do lado da oferta dependerá também do tipo de resposta adoptado no Ocidente. Na China, o esforço de contenção do vírus foi realizado com recurso agressivo ao isolamento compulsivo (“social distancing”). Mas é improvável que o mesmo tipo de resposta seja politicamente aceitável nas democracias ocidentais. De qualquer forma, à medida que as pessoas forem ficando em casa na Europa e na América, maior será o choque do lado da oferta. Quanto a isto, a redução das taxas de juro pouco efeito surtirá.

Na realidade, a pressão maior da opinião pública estará sobre os governos no sentido de estes implementarem políticas orçamentais expansionistas, seja para reforço dos orçamentos da saúde ou para medidas de apoio às empresas (ou ainda para esforços de maior envergadura do lado da procura, o que provavelmente se afiguraria inflacionista e contraproducente a médio prazo).

No caso da despesa com saúde, foi há dias divulgado pelo Eurostat que em Portugal a despesa pública com saúde em 2018 foi inferior à de 2009, quer em termos absolutos quer em percentagem do PIB. O mesmo terá acontecido em 2019. Não é surpresa. Há muito que chamo a atenção para a sub-afectação de despesa pública à saúde (em percentagem da despesa pública total) que se verifica em Portugal face a outros países europeus.

Em face do subfinanciamento da saúde, a que se junta a preferência do Governo pelo modelo falhado da gestão pública da rede hospitalar, a forma atabalhoada como reagiram os responsáveis políticos e hospitalares ao afluxo de utentes aos hospitais após a confirmação de casos positivos em Portugal não foi especialmente encorajadora. Esperemos, pois, que aquele episódio da senhora que foi fechada na casa de banho do centro de saúde, à falta de outro local de isolamento, tenha sido caso único.

Numa altura em que se prevê um aumento do número de infectados, seria altamente desejável que a capacidade de resposta dos hospitais, incluindo os públicos e os privados, fosse devidamente articulada.

Há, desde logo, questões de planeamento operacional e logístico que têm de ser acomodadas, designadamente a previsão dos meios necessários (máscaras, luvas, ventiladores, oxigénio, medicamentos e, muito provavelmente, também alas para isolamento hospitalar) em face da procura que se antevê. Ao mesmo tempo, seria também altamente desejável que em matéria de baixas médicas (por motivo de internamento ou de quarentena) existisse uma mensagem clara e firme do Governo, em oposição à multiplicidade de declarações públicas dos últimos dias, para que os agentes económicos pudessem lidar com a situação sem desgaste nem confusões adicionais. Nestas ocasiões falar a uma só voz ajuda.

A economia mundial já estava em desaceleração antes do coronavírus ter aparecido. Na Europa, havia pelo menos três grandes economias (Alemanha, França e Itália) que estavam a desafiar a recessão. O ciclo económico já ia longo – ainda que a ritmos diferentes –, pelo que a recessão seria um momento depurador da má alocação de recursos que sempre se acumula no fim da expansão. Agora, o caminho encurtou-se. Mas, ao mesmo tempo, aumentou também a pressão para se implementarem políticas contracíclicas, mormente política orçamental acomodatícia.

A questão é que nem todos os países têm a mesma margem orçamental. A Alemanha, entre as maiores economias mundiais, é provavelmente a única que tem algum espaço de manobra relevante. As restantes, incluindo os Estados Unidos e a China (e, na Europa, a França e a Itália), partem para esta crise em cima de défices públicos relevantes, ou mergulhadas em dívida pública (o caso do Japão), ou ainda metidas em outros trabalhos (como o Reino Unido).

É difícil antecipar o impacto de médio prazo desta crise. Mas não me surpreenderia se, depois de ultrapassada a crise de saúde pública, o resultado fosse o regresso da inflação. Procurando não me limitar à tese monetarista, temos do ponto de vista conceptual a inflação associada aos preços das matérias-primas, dos salários, dos activos financeiros, dos activos reais, dos custos de contexto, e dos bens e serviços.

A política monetária dos últimos anos teve em vista contribuir para a inflação dos activos financeiros e dos activos reais. Assim, ao primeiro abanão a sério, como se viu ainda há dias, os bancos centrais correrão em auxílio dos investidores. A ver vamos com que resultado. Quanto às demais fontes de inflação, elas serão espoletadas pela política orçamental expansionista e pelo desequilíbrio das contas públicas, que na maioria dos casos citados se acentuará, sem esquecer outros custos de contexto que estão aí para durar. A capacidade de resposta dos decisores públicos, que hoje estão perante soluções más e soluções péssimas, já conheceu melhores dias.

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