O custo elevado da popularidade de Marcelo

O Presidente abdicou do seu poder de escrutínio ao tornar-se um protagonista activo das políticas públicas e um cúmplice da forma como são abordados e comunicados os problemas e dificuldades do país.

Há uma semana Marcelo Rebelo de Sousa fez uma declaração reveladora ao Expresso: “Não se espere que o Presidente crie uma crise política ou um afrontamento com o Governo durante uma pandemia em que existe um esforço comum”. Esta frase, aparentemente simples e que merecerá ampla concordância, foi dita em “on” (ao contrário do que é habitual nas declarações que chegam de Belém) e mostra-nos várias coisas.
  • A primeira é que o Presidente da República ganhou consciência de quanto se colou ao Governo e à forma como o combate à pandemia tem sido feito e comunicado. Marcelo Rebelo de Sousa facilmente é tido como um cúmplice co-autor do que foi feito, tal é o seu envolvimento.
  • A segunda é que agora, com o barco a meter água, – a manchete dessa edição Expresso, ao lado da frase do Presidente, era “Falta de técnicos impediu controlo da epidemia em Lisboa – Saúde demorou 15 dias a reagir” – Marcelo Rebelo de Sousa sente urgência em encontrar uma justificação que o comprometa o menos possível e justifique essa intensa proximidade.
  • A terceira evidência é estrutural. Mostra que para o Presidente só há duas atitudes possíveis, extremas: ou a promiscuidade da colaboração entusiasmada que tem praticado; ou a gravidade de uma “crise política” perante “um afrontamento com o Governo”. Para Marcelo, nada existe ali no meio que lhe permita o exercício da sua função com distanciamento, rigor, equilíbrio e exigência dentro da colaboração institucional que se espera de um Presidente.

E, de facto, assim é. Olhando para trás, Marcelo Rebelo de Sousa nunca soube ou nunca quis encontrar um registo e tom diferentes de um certo “nacional porreirismo” que foge a sete pés das dificuldades, das divergências, da tensão política que faz parte da normalidade democrática, do escrutínio de todos os poderes e do aborrecimento que a assertividade, a frontalidade e a verdade por vezes implicam.

Todos recordamos as primeiras palavras que o Presidente da República disse ao país quando, em Junho de 2017 chegou, noite avançada, ao cenário trágico de Pedrógão Grande: “O que se fez foi o máximo que se podia fazer. Não era possível fazer mais”. Tinha acabado de chegar, ainda se desconhecia a extensão total da tragédia, as chamas ainda seguiam altas e nenhuma conclusão podia ser tirada. Mas, intuindo que essa averiguação teria que ser feita, o Presidente tratou logo de condicionar qualquer juízo sobre o que se fez e o que se podia e devia ter feito.

Hoje sabemos que Marcelo não tinha razão mas nunca mais foi o momento certo para regressar a um assunto desagradável. Nem há umas semanas, quando se passaram três anos sobre o incêndio e o Observatório Técnico Independente da Assembleia da República fez um balanço muito negativo do que foi feito desde então. Que nada possa atrapalhar a serenidade e recato que a memória das vítimas nos merece, este é um assunto incómodo sobre a forma como o Estado por vezes trata os seus.

Tancos é outro tema desagradável, daqueles que as famílias evitam discutir à mesa dos almoços de Domingo para não beliscar a harmonia de fachada. E assim fez o Presidente da República, que é, por inerência, o Comandante Supremo das Forças Armadas. Conviveu durante largos meses com a complacência que a liderança do Exército foi mostrando quando se percebeu a encenação do achamento das armas. Teve que ser o novo ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, a indicar, e bem, a porta de saída a Rovisco Duarte. De resto, o Presidente foi repetindo o mantra habitual “doa a quem doer, até às últimas consequências” talvez sem se dar conta que o simples facto de ter que o enunciar e repetir pode levantar a legítima dúvida nos cidadãos: será que numa democracia podia ser de outra forma, colocar uma pedra sobre o assunto e não investigar até ao fim? Se calhar…

E, chegados à dificuldade maior, mais prolongada e mais grave que é a epidemia, o Presidente da República começou com outra declaração que não se esquece: “Ninguém vai mentir a ninguém. Isto vos garante o Presidente da República”.

Pode pensar-se que não é nada de novo. É só mais um político a fazer uma promessa que sabe à partida que não pode cumprir, até porque a verdade ou a mentira alheias não dependem do próprio.

Mas é muito mais do que isso.

É, por um lado, uma anestesia à sociedade e ao escrutínio – não sei se o psiquiatra José Gameiro pensava nisso quando disse numa entrevista ao jornal ique “preferia, apesar de tudo, que ele não fosse tão anestesista”. Se o Presidente garante a verdade nem vale a pena verificar a sua violação porque tudo o que é dito está previamente certificado.

Por outro, é um cheque em branco assinado à partida a quem quer que tenha responsabilidades políticas num assunto vasto, com centenas de responsáveis públicos e que nos toca a todos: a saúde.

É claro que já se mentiu, já se contaram meias verdades, já se torceram argumentos, regras e números de acordo com as conveniências do momento. Tudo com o salvo conduto prévio do Presidente da República que não tinha nenhuma necessidade – nenhuma mesmo – de fazer aquela declaração que foi escrita, ponderada, revista e lida com a solenidade própria de uma declaração ao país.

Desde então, a espiral presidencial não mais parou.

Foi o “milagre chama-se Portugal” – mais uma escrita e dita numa comunicação oficial ao país – quando tudo estava a correr bem e não acautelando os riscos que se conheciam e que vieram a materializar-se.

Foi a defesa do modelo de comemoração do 25 de Abril no discurso dito na ocasião perante o Parlamento, mas criticado semanas depois para defender o 10 de Junho minimalista.

Foi a excepção que incluiu no seu decreto presidencial de Estado de Emergência para permitir as celebrações do 1º de Maio, para depois as criticar também na mesma comparação com o “seu” Dia de Portugal.

Foi a interpretação pública bondosa dos números e explicações dos especialistas dadas na última reunião do Infarmed, escondendo da opinião pública a gravidade e os problemas referidos dentro da reunião à porta fechada e alinhando com a narrativa do governo sobre o número de testes realizados.

Foi a patética cerimónia de celebração em Belém da realização dos jogos da fase final da Champions em Lisboa, com as mais altas figuras do Estado, três ministros e convenientemente marcada para a hora dos telejornais. Para promover o país lá fora? Não, para consumo interno porque em Badajoz já não se vê os telejornais portugueses. A questão é que Marcelo não perde uma oportunidade para dar circo ao povo. Mais uma anestesia para disfarçar as dores.

E foi, recentemente, a abordagem à inclusão de Portugal continental na “lista negra” britânica das restrições na entrada no país. O Presidente da República deve defender os interesses do país mas não pode utilizar argumentos que, além de infantis, mascaram o problema. A questão não é se o Reino Unido é ou não nosso amigo e se amanhã vai precisar da nossa ajuda. Isto não é uma questão de dar uma ajudinha ou fazer um jeitinho aos amigos. Não é uma questão de torcer as regras para que uns possam fazer o que é proibido a outros de acordo com conveniências ou proximidades políticas ou diplomáticas – como se tem feito por cá.

É uma questão de saúde pública. Há dados e há critérios a aplicar. Se temos dados que contrariem a decisão do Reino Unido é por aí que temos que argumentar e construir o nosso caso, mostrando que eles estão a fazer mal as contas. Porque nem a gestão de uma pandemia se compara a uma cimeira de amigos nem as fronteiras são uma porta de discoteca.

O Presidente da República percebeu agora que a sua responsabilidade neste assunto é tão grande como a do governo e das autoridades de saúde.

Por vontade própria e por não saber traçar a fronteira entre colaboração institucional em nome do interesse nacional e a separação de funções, de responsabilidades e de papéis.
Porque evita a todo o custo o confronto, a fricção, as divergências ou a diversidade de opiniões e de soluções. Mas elas não só são parte central da política como são saudáveis pela natural competição que trazem aos seus protagonistas.

Porque não sabido lidar com problemas, contratempos, crises e com as más notícias sem adoptar uma de duas soluções: ou tentar desvalorizar ou desviar o assunto.

E porque parece apostado em evitar que algum assunto desagradável possa beliscar o seu passeio triunfal a caminho de uma reeleição com uma votação recorde.

O problema é que o país precisa de um Presidente da República com distanciamento e vontade de exercício dos seus poderes de escrutínio, de exigência e de alerta. Um desses poderes reside no uso da palavra – veja-se os antecessores Soares, Sampaio ou Cavaco -, que Marcelo cedo desbaratou ao falar todos os dias sobre tudo e mais alguma coisa. Já banalizou a sua palavra e vai custar-lhe agora muito mais ser ouvido quando for importante.

O outro é o de vigilância, de que o Presidente abdicou ao tornar-se um protagonista activo das políticas públicas e um cúmplice da forma como são abordados e comunicados os problemas e as dificuldades.

O que resulta daqui é um Presidente que branqueia onde devia exigir e que distrai quando devia notar.

Os problemas e insuficiências do país, tradicional falta de exigência e o fraco escrutínio dispensam bem a espécie de União Nacional, o “tudo pela Nação, nada contra a Nação” em vigor sem que a alternativa tenha que ser uma crise política.

As anestesias saem-nos sempre caras e esta já vai longa. Marcelo saberia, certamente, ser popular de outra forma.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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