
O debate do estado de uma nação que deve depender menos do Estado centralista
O debate do Estado da Nação mostrou que, apesar das divergências ideológicas, há um espaço crescente para entendimentos em matérias fundamentais, como a competitividade fiscal.
O debate do Estado da Nação da semana passada foi, a meu ver, o mais importante da última década. Não o foi pelas habituais querelas político-partidárias, que pouco interessam aos cidadãos, nem pelo anúncio de um novo aumento extraordinário de pensões – a principal novidade, mesmo a calhar para as eleições autárquicas, significando que há folga orçamental para cumprir essa promessa –, mas porque parece haver, finalmente, condições parlamentares para baixar o IRC de forma transversal e programada.
O Chega poderá viabilizar e até dar maior ambição à proposta do governo, o que é bem preciso, pois segundo um trabalho do Gabinete de Estudos da FEP – Faculdade de Economia do Porto, a divulgar proximamente, a urgência em elevar a competitividade da economia é ainda maior do que se supunha.
A baixa do IRC e IRS viabilizada pelo Chega, o aumento de pensões e a procura interna como refúgio
A redução da carga fiscal, em particular de IRC e de IRS – onde importa prosseguir a redução em curso –, é essencial para aumentar o investimento privado, a produtividade e o nível de vida do país, como tenho vindo a defender de forma insistente, pressupondo uma reforma do Estado para melhorar o seu funcionamento e reduzir o seu elevado peso na economia, que tem ‘asfixiado’ o setor privado.
Foi, por isso, positivo que o Primeiro-ministro tenha dado destaque, logo na abertura do debate, ao anúncio de uma baixa da taxa geral de IRC para 19% em 2026 (e para 15% nas empresas até 50 mil euros de lucro tributável), 18 % em 2027 e 17 % em 2028, prosseguindo assim a descida de 1 ponto percentual por ano iniciada em 2025 (de 21% para 20%), aprovada depois em Conselho de Ministros.
Naturalmente, tratando-se de uma matéria fiscal, terá sempre de ser aprovada pelo Parlamento em cada ano, mas o anúncio é uma importante sinalização para os investidores. Não por se tratar de uma novidade, pois a medida está prevista no programa eleitoral da AD de 2025 e no programa de Governo, mas porque, finalmente, parece haver a perspetiva de viabilização, no atual quadro parlamentar, de uma redução transversal e programada do IRC, sendo a não reversibilidade da medida crucial para as decisões de investimento, que são tomadas com muita antecedência para horizontes geralmente longos.
Isto porque o Chega, partido que agora lidera a oposição, indicou que está disposto a aprovar a redução prevista em 2026 se for acompanhada por uma redução da derrama estadual, cuja eliminação é, a meu ver, prioritária para a promoção de investimento estruturante, como sustentei em crónicas anteriores. Como o governo também tem prevista a descida dessa derrama, mas sem a priorizar, antecipa-se um entendimento com o Chega (e talvez com a IL) numa baixa do IRC com maior ambição em 2026.
Para os anos seguintes, dado que o Chega tem previsto no seu programa eleitoral uma baixa da taxa de IRC até 15% e a eliminação da derrama estadual, a perspetiva é que o governo também terá de ser mais ambicioso se quiser a viabilização do Chega, para cumprirem os respetivos programas. Isto, se o PS não ‘entrar em jogo’ prometendo viabilizar propostas próximas da que o governo agora apresentou, o que a meu ver faria sentido – a atual proposta é similar ao acordo de 2014 entre PS e AD –, mas a anterior direção do PS mostrou-se sempre contrária à baixa transversal do IRC e falta perceber a posição da atual.
O mais irónico é que seria o Chega a reaproximar a AD do seu programa eleitoral de 2024, onde estava prevista uma descida de 2 pontos percentuais por ano da taxa geral, até 15% em 2027 (e 12,5% na taxa reduzida), uma proposta muito mais ambiciosa do que a atual e que daria um maior estímulo à competitividade, que é essencial para aumentar o nível de vida, reduzir a emigração jovem e gerar mais recursos, a prazo, para sustentar o Estado social e o combate às desigualdades.
Falta dizer o que mudou para o Chega se tornar, de repente, parte da solução também nesta matéria:
- Da parte do governo AD, a promessa de negociar com todos os partidos, incluindo o Chega, ganhou efetividade com a clarificação de que o ‘não é não’ prometido por Luís Montenegro em campanha eleitoral se refere apenas a acordos de governo ou parlamentares com esse partido, mas deixando a porta aberta para acordos temáticos, como tenho defendido. Os resultados concretos referidos a seguir demonstram que tem havido pragmatismo na abordagem.
- Da parte do Chega, uma postura aparentemente mais responsável – menos errática e mais confiável – e pragmática para aprovar matérias concretas com ganhos de causa aceitáveis. Primeiro, com a aprovação da baixa adicional de IRS proposta pelo governo condicional a uma redução adicional em 2026 que foi aceite pelo governo, seguindo-se o entendimento no chamado ‘pacote de imigração’ – em que o governo se aproximou à linha mais dura do Chega, mas moderando as propostas mais extremadas desse partido – e a referida promessa de viabilização da baixa de IRC em 2026 do governo se alargada à derrama estadual. Isto, apesar das polémicas do Chega prosseguirem – como a leitura de nomes de crianças com apelidos de origem árabe por André Ventura no Parlamento, que critiquei e desmontei na crónica anterior, ou a troca estéril de adjetivos com o líder do PS já no debate –, optando o governo e a liderança da mesa da Assembleia República por não dar demasiada atenção e não contribuir ainda mais para a mediatização dos casos, que é o objetivo óbvio desse partido, para que seja constantemente o centro das atenções.
Assim, a perspetiva de viabilização da baixa de IRC surge após o entendimento entre o governo AD e o Chega no IRS, bem como no ‘pacote da imigração’, que inclui a Lei de Estrangeiros, já aprovada em conjunto no Parlamento – e em apreciação pelo Presidente da República, que poderá promulgar, vetar ou pedir apreciação de constitucionalidade nas matérias sensíveis –, e uma proposta de Lei da Nacionalidade mais restritiva, cuja votação foi adiada para setembro.
Se a maioria das medidas do pacote de imigração parece fazer sentido – dado o descontrolo evidente da imigração nos números de estrangeiros da AIMA, na sequência do Regime de Manifestação de Interesse aprovado pelo PS e entretanto terminado pelo governo AD –, a política de vistos de trabalho parece-me desadequada e as propostas para a naturalização afiguram-se demasiado restritivas, como analisei numa crónica passada, podendo ainda haver medidas que requeiram a apreciação de constitucionalidade.
No que se refere ao Orçamento de Estado de 2026, o Chega já afirmou que não irá ser “muleta do governo” e certamente tentará conseguir ainda mais ganhos de causa, pelo que a questão é saber se ‘esticará demasiado a corda’ ou poderá ser este partido a viabilizar a proposta do governo.
Da parte do PS, que ainda se está a posicionar após a eleição da nova liderança de José Luís Carneiro, há que recuperar o atraso com propostas concretas que possam gerar entendimentos temáticos com o governo, algumas das quais foram apresentadas no debate.
Não me parece ser uma boa estratégia da atual liderança do PS acusar o governo de ter o Chega como parceiro preferencial e se “encostar à agenda” desse partido na imigração e nacionalidade. Isso poderá prejudicar a busca de entendimentos nos temas que considera críticos – como a saúde, que analiso mais abaixo –, aproveitando a abertura negocial demonstrada pelo governo para recuperar protagonismo e se reaproximar da liderança efetiva da oposição.
Da parte do governo, além do maior pragmatismo referido em entendimentos temáticos, o aumento extraordinário de pensões e a baixa do IRS são formas inteligentes de robustecer a procura interna e fazer face a uma conjuntura externa adversa – e que o será ainda mais se a União Europeia (UE) não alcançar um acordo para baixar as tarifas que Trump quer impor –, procurando contrariar o abrandamento do PIB.
Contudo, essa política de gestão de procura apenas serve para o curto prazo e esbarra na exiguidade do mercado interno, daí ser essencial a baixa do IRC para a atração de investimento estrangeiro e aposta nas exportações, pois só assim a economia poderá crescer a maior ritmo a médio e longo prazo, com a baixa de IRS a complementar essa abordagem por favorecer a retenção de talento.
Contudo, a estratégia do governo esconde riscos claros e parece-me incompleta.
Se em 2025 as contas públicas parecem estar controladas – caso contrário, o governo não procederia a novo aumento extraordinário de pensões –, para manter contas públicas equilibradas em 2026, o governo terá de compensar a perda temporária de receita, a pressão dos aumentos de salários em várias carreiras da função pública e o efeito dos empréstimos do PRR. Idealmente, tal deverá ser feito com estratégias de redução do peso da despesa corrente no âmbito da reforma Estado. Não basta criar um ministério com esse nome, é preciso mostrar iniciativas e, mais tarde, resultados palpáveis.
Assim, a principal ausência do debate do estado da Nação foi o tópico da reforma do Estado, com vista a baixar o peso da despesa corrente para acomodar, além da perda temporária de receita fiscal de IRC e IRS, um aumento significativo do peso do investimento público, que é necessário para contrariar anos sucessivos de desinvestimento, mal disfarçado pelos fundos europeus, e fazer face à sua redução nos próximos anos.
Infelizmente, temo que o investimento público venha a ser sacrificado na gestão orçamental de 2026, tal como sucedeu nos últimos governos (PS e AD), com execuções muto abaixo do previsto. Relembro que o Conselho de Finanças Públicas apontou para um défice de 1% do PIB em 2026, mais de metade explicado pelo impacto dos empréstimos do PRR, pelo que este tema regressará no debate do orçamento.
Convém também realçar que o risco orçamental seria ainda maior se o aumento de pensões definido pelo governo, em vez de extraordinário, fosse permanente, como propõem o PS e o Chega, sendo que nenhum partido apontou qualquer medida tendente a aumentar a sustentabilidade da Segurança Social.
Quanto à estratégia de competitividade fiscal, que promove a prazo um crescimento extrovertido, deve ser complementada por uma estratégia de diversificação das exportações e aposta na reindustrialização, tendo em conta as ameaças e oportunidades do contexto geopolítico (e.g., ‘frienshoring’ e ‘nearshoring’), sobretudo se a UE não chegar a um acordo comercial com os EUA, temas estes também fora do debate.
Também não foram debatidas reformas estruturais que defendo, como a reorganização administrativa e territorial do Estado, incluindo a eliminação do nível das freguesias, cuja função seria absorvida pelos municípios, a fusão de alguns municípios e a criação de regiões administrativas, todas elas sujeitas à regra de ouro das finanças públicas, com o objetivo de promover uma descentralização mais efetiva e uma maior coesão territorial.
Debate sobre Saúde, Habitação e Defesa sem grandes novidades
Na área da Saúde, sempre uma das mais problemáticas (não apenas em Portugal), o Primeiro-ministro limitou-se a afirmar que a situação melhorou face a um ano atrás, que o plano de emergência que lançou na anterior legislatura está em execução, e há medidas de racionalização em curso. Embora admitindo que a situação não é a ideal, os problemas já existem há muito tempo e o Serviço Nacional de Saúde (SNS) continua a ser dos melhores sistemas a nível europeu, afirmou. Sendo uma boa defesa da governação nesta área, na prática o governo não apresentou novas medidas durante o debate, mas recebeu propostas da oposição.
O PS propôs a constituição de uma unidade de coordenação das emergências hospitalares (INEM, bombeiros, Força Aérea, SNS), que o governo admitiu integrar nas suas reformas, pelo que esta poderá ser uma área de entendimento entre os dois partidos.
Por sua vez, o Chega pressionou o governo para apresentar um plano concreto em seis meses com vista a reforçar o SNS e as urgências, após julgar insuficiente o discurso do governo nesta matéria.
Quanto à área da Habitação, a oposição criticou a ação do governo, mas não apresentou medidas concretas, que eu saiba, enquanto na área da Defesa o PS solicitou informação e transparência dos investimentos para alcançar as novas metas no âmbito da NATO e da UE.
Já me tenho pronunciado sobre a necessidade de reformas nestas três áreas. Por exemplo, gostaria de ter visto abordadas as parceiras público-privadas na saúde – se sempre são para avançar –, reformas na área do arrendamento e estratégias para potenciar o impacto económico do setor da Defesa.
Educação com medida positiva, mas não estrutural
Na área da Educação, foi anunciado pelo governo o alargamento dos subsídios de mobilidade a todos os professores deslocados, uma medida que considero positiva, mas que não altera nada de fundamental.
Defendo que a contratação de professores deveria ser feita ao nível das escolas ou municípios, como noutros países, evitando que os professores tivessem de ‘andar com a casa às costas’, com prejuízos para os próprios e para os alunos, que beneficiariam de uma maior estabilidade do corpo docente.
Conclusão
O debate do Estado da Nação mostrou que, apesar das divergências ideológicas, há um espaço crescente para entendimentos em matérias fundamentais, como a competitividade fiscal. A redução programada do IRC anunciada pelo governo e com perspetiva de viabilização pelo Chega, tal como no IRS, é um passo na direção certa, mas será insuficiente se não vier acompanhada de uma verdadeira reforma do Estado, capaz de reduzir o peso da despesa corrente para financiar menos carga fiscal e mais investimento público.
Portugal precisa de uma visão estratégica que vá além das medidas conjunturais de estímulo à procura interna, que no imediato faz sentido para contrariar a pior conjuntura externa. Além do desagravamento fiscal, é crucial a diversificação das exportações e da base produtiva – com aposta na reindustrialização, reduzindo a dependência excessiva do turismo –, o aumento da poupança e do investimento nos vários setores (para reduzir a dependência de apoios da UE), a reprogramação do PT 2030 (focando-o em projetos de elevado valor acrescentado e produtividade em bens e serviços transacionáveis) e a reorganização administrativa territorial do Estado, alguns temas relevantes que estiveram fora do debate.
Sem reformas em áreas cruciais como essas, corremos o risco de continuar dependentes de um Estado centralista e ‘viciado’ em fundos da UE, incapaz de promover a coesão territorial e um crescimento económico mais alto e sustentável, que nos aproxime do grupo de países com maior nível de vida da UE.
O momento político atual, em que os dois principais partidos da oposição concorrem para conseguir entendimentos palpáveis com o governo em temas importantes, pode ser também uma oportunidade rara para concretizar reformas estruturais há muito adiadas, nomeadamente nas áreas da saúde, educação e habitação, abordadas no debate. Para tal, é necessária coragem política e sentido de compromisso – com o futuro do país, e não com cálculos eleitorais de curto prazo.
Se o Chega e o governo revelam agora mais pragmatismo para alcançar entendimentos temáticos, é bom que o PS siga o exemplo se não quiser ficar para trás e perder ainda mais base eleitoral.
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