O défice, a Caixa e a azia de Centeno
É uma ironia que o ministro que tanto recorreu a truques e a maus processos orçamentais, venha agora alegar que o défice de 2017 foi, afinal, uma espécie de resultado fabricado pelo Eurostat.
Esta semana ficámos a saber que o défice do Estado português em 2017 disparou para 3% do PIB. Não foi propriamente uma surpresa. Contudo, não tendo constituído surpresa para os mais atentos, a verdade é que o anúncio do INE colidiu frontalmente com a garantia que, ainda há semanas, o senhor primeiro-ministro havia prestado no parlamento: que o défice ficaria abaixo dos 1,4% do PIB que o Governo estabelecera como meta para o ano passado.
Em suma, a reserva do senhor ministro das Finanças, que nesta matéria nunca pareceu partilhar da efusividade de António Costa, tinha afinal uma razão de ser: A suspeita de que o INE, por imposição do Eurostat, lhe poderia estragar a festa. E assim foi. A azia do ministro das Finanças, na apreciação que fez à decisão do Eurostat, não deixou margem para dúvidas. O tiro do primeiro-ministro saiu mesmo pela culatra e a recapitalização da CGD foi mesmo ao défice.
Relativamente à classificação estatística da operação de recapitalização da CGD, o INE, de forma muito transparente, enunciou os argumentos invocados quer pelo Eurostat quer pelo Governo. Segundo o INE, a natureza de transferência de capital (argumento invocado pelo Eurostat) refere-se ao “pagamento para cobrir perdas acumuladas, excecionais ou futuras, ou efetuado para fins de política pública (…) Perdas excecionais são perdas importantes registadas num período contabilístico, na contabilidade de uma sociedade, que decorrem geralmente de reavaliações em baixa de ativos da conta de património, de tal forma que a sociedade está sob ameaça de grave crise financeira (fundos próprios negativos, insolvência, etc.)”.
Quanto à natureza de investimento financeiro (argumento invocado pelo Governo), segundo o INE, aplica-se ao “pagamento efetuado em casos em que as administrações públicas agem como um acionista, já que têm a expectativa válida de uma taxa de rentabilidade suficiente sob a forma de dividendos ou ganhos de detenção (…) Quando os investidores privados são parte da injeção de capital, e as condições para os investidores do setor privado e das administrações públicas são idênticas, tal é uma prova de que o pagamento deverá ser uma aquisição de participações”.
Lidos os argumentos, restam-me poucas dúvidas de que a operação de recapitalização da CGD foi mesmo uma transferência de capital. Tem, pois, razão o Eurostat. Vejamos. Entre 2011 e 2016, a CGD não fez outra coisa senão acumular prejuízos. Ademais, desde 2007 que o banco público vem sendo sucessivamente recapitalizado (na prática, uma política pública) sem que daí tivesse resultado para o Estado qualquer mais valia líquida associada ao seu “investimento”.
Assim, entre 2007 e 2013, o banco recebeu dos contribuintes 2.950 milhões de euros em aumentos de capital, por contrapartida da entrega de 1.070 milhões de euros em dividendos (dos quais, os últimos foram distribuídos em 2010). Entretanto, àqueles 2.950 milhões de euros, somou-se um novo (mega) aumento de capital em 2017, de sensivelmente 3.950 milhões (incluindo aqui os 900 milhões de euros na forma de empréstimos subordinados, os famosos “cocos”, também transformados em capital), que elevaram para quase 6.000 milhões de euros o envolvimento líquido (de dividendos) dos contribuintes junto da CGD.
Note-se que este último aumento de capital serviu sobretudo para aumentar o rácio de cobertura do crédito em risco da CGD para 100%, e também para suportar custos de reestruturação do banco. Na prática, a injecção de capital serviu para cobrir perdas acumuladas do passado – uma reavaliação em baixa do valor dos activos no balanço do banco – e perdas futuras. Assim, não ver aqui uma deliberada política pública, o argumento que levou o Eurostat a considerar a recapitalização como uma transferência de capital, não deixa de ser intelectualmente pobre, e intelectualmente desonesto.
O mesmo se poderá dizer do alegado “co-investimento” realizado por investidores privados. De facto, a ter acontecido, esta situação poderia eventualmente ajudar a redefinir a operação como um investimento financeiro. Todavia, nem os investidores co-investiram com o mesmo montante de capital nem o fizeram nas mesmas condições de “investimento” do Estado.
Enquanto o Estado colocou na CGD 3.950 milhões de euros como accionista, os privados entraram com 500 milhões e fizeram-no como obrigacionistas (subordinados, é certo). O Estado receberá dividendos se, no futuro, houver lucros; já os privados receberão juros de quase 11% ao ano, durante pelo menos 5 anos, enquanto os fundos próprios estiverem acima de determinado limite.
É claro que nada disto terá impacto na apreciação externa das contas públicas portuguesas, porque a Comissão Europeia há muito tempo que vem sinalizando que a eventual inclusão da CGD no cálculo do défice de 2017 não contaria para efeito do procedimento por défice excessivo. Deste ponto de vista, podemos ficar descansados, o que é bom. Além disso, também é bom que, expurgado o efeito da CGD, o défice público de 2017 tivesse ficado em 0,9% do PIB.
O crescimento económico foi superior ao previsto e a despesa pública em percentagem do PIB diminuiu, o que mais uma vez foram boas notícias. Só é pena que o ministro das Finanças, em vez de festejar o feito, tivesse tentado virar o bico ao prego, afirmando que a despesa pública (nominal) tinha aumentado, quando na verdade o indicador a ter em conta não é a despesa pública nominal, mas sim a despesa pública em percentagem do PIB que diminuiu. É assim que o economista mede o peso do Estado no PIB, e não como o fez o ministro.
Também aqui se observou a Centeno uma certa azia, porventura instrumental, e que terá servido para se esquivar às críticas dos parceiros parlamentares do Governo quanto à forma como essa mesma redução da despesa pública foi alcançada. Ao presidente do Eurogrupo não ficam bem os malabarismos conceptuais. Mas, enfim, não deixa de ser uma ironia que este mesmo ministro, que nos últimos anos tanto recorreu a truques e a maus processos orçamentais, venha agora alegar que o défice de 2017 foi, afinal, uma espécie de resultado fabricado pelo Eurostat. Apetece dizer: quem com ferros mata, com ferros morre.
Nota: Por opção própria, o autor escreve segundo a antiga ortografia
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