O Fandango do OE

  • Fernando Sobral
  • 8 Fevereiro 2020

O país bocejou, enquanto Governo e oposição dançavam uma versão mal coreografada do Fandango.

Portugal, por vezes, parece-se com as revistas do antigo Parque Mayer. Ou, mais modestamente, com o programa televisivo “Os Malucos do Riso”. Nada contra o divertimento e a gargalhada. Mas, em assuntos um pouco sérios, deveria haver algum recato. Quando o Banco de Portugal não consegue notificar, durante três anos, o sr. Tomás Correia, não se pode apenas culpar os deficientes CTT. Afinal um continente afasta a sede do Banco de Portugal da do Montepio: uma fica na Rua do Comércio e outra na Rua Áurea. Que é como quem diz, uma está localizada na Tasmânia e outra na Sibéria. As comunicações entre ambas são complicadas e costumam fazer-se, preferencialmente, por pombo correio ou pelo método mais tecnológico das mensagens de fumo. Há quem acredite que vivemos num país civilizado.

O país bocejou, enquanto Governo e oposição dançavam uma versão mal coreografada do Fandango. Discutindo o OE de 2020, todos quiseram passar por amigos dos “pobrezinhos”, para, num futuro mais ou menos próximo, poderem mostrar as suas imaculadas virtudes aos eleitores.

Todos queriam salvar a pátria e os portugueses, uns através do milagre do superávite e outros através do IVA da electricidade. Como escrevia Eça de Queiroz em 1867: “Mas os ministros têm um meio de salvar a pátria, esse meio são os impostos; faça o fisco uma grande razia pela fazenda do povo, saqueie e fuja, e o país continuará caminhando na sua liberal lentidão, gordo de cabedal e grato aos salvadores. A oposição, quando isto vê, enche-se de nobres cóleras, e solta os seus raios. Engano ainda. Os tributos são necessários, mas mais tarde.”

Nada mudou. Os impostos, em Portugal, são pastilhas elásticas. Colam-se nos pés dos portugueses e nunca mais desaparecem. Seguir as votações das alterações ao OE, através da ARTV, e tendo como guia o inábil sr. Ferro Rodrigues, ainda mais desnuda a relação da carga fiscal com uma velha história do Tio Patinhas. Este salva uma tribo africana de um feiticeiro que vendia diamantes sem dividir o lucro com os habitantes. Feliz, o Tio Patinhas, diz: “O feiticeiro nunca mais voltou para a aldeia e eu dividi…hã…em partes iguais os diamantes da mina com os indígenas. Um para vocês, dois para mim. Dois para vocês, quatro para mim”. Onde é que já vimos isto? Não importa. O OE foi aprovado, o Governo dorme a acariciar a barriga e a oposição mostra “selfies” com as suas vitórias de Pirro.

Aqui nada muda, mas lá fora o mundo está a transformar-se. O coronavírus vai reforçar uma tendência visível, tornando-o menos global e mais receoso. Enquanto aqui se pensa que Lisboa será uma Disneylândia turística para sempre, a quarentena de milhares de passageiros em paquetes de cruzeiro sugere outra era para o turismo. Isso não parece incomodar a ministra da Agricultura, a sra. Maria do Céu Albuquerque que declarou, sem se comover, que o novo vírus pode ter “consequências bastante positivas” na agricultura portuguesa e nas exportações de produtos nacionais para os mercados asiáticos. Ora aí está uma optimista. Em cada catátrofe alheia, vê a possibilidade de se safar. “Capitalismo selvagem”, diriam alguns. Mas o Governo da sra. Maria do Céu não tem “valores” de esquerda?

Tudo isto acontece quando passaram 70 anos sobre o nascimento de George Orwell, autor do incontornável “1984”, fábula sobre os limites do controle autoritário. Passa-se num pais imaginário onde governa um partido único, que fez da desinformação e da propaganda as suas armas. “1984” é um dicionário apocalíptico sobre os nossos medos. É uma sátira, uma profecia e um aviso.

Conjuntamente com o brilhante e, mais esquecido “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, anteciparam estes dias líquidos e nervosos. Orwell tinha medo dos que proibiam livros. Huxley tinha medo que não houvesse razão para proibir livros, porque ninguém desejaria lê-los. Orwell tinha medo dos que nos queriam privar de informação. Huxley dos que nos dessem tanta informação, que os cidadãos seriam reduzidos à passividade e egoísmo. Orwell tinha medo que a verdade nos fosse sonegada. Huxley, que ela pudesse ser afogada num mar de irrelevâncias. Orwell tinha receio de que nos tornássemos peões de uma cultura capturada. Huxley de que nos tornássemos uma cultura trivial. O mundo de hoje começa a parecer-se uma mistura dos dois pesadelos.

Sugestão da semana

Para os fãs da Ficção Científica, “Fundação e Império” (edição Saída de Emergência, 2020) de Isaac Asimov é imperdível. Originalmente publicado em 1952, é um exercício notável sobre o poder.

  • Fernando Sobral
  • Jornalista

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