O legado de Draghi

A dádiva de Mario Draghi para os europeus foi tempo. Ter preservado a União Europeia foi um feito de monta, mas terá sido suficiente?

No próximo dia 31 de outubro, Mario Draghi sairá pela última vez da Eurotower como presidente do BCE, deixando para trás um sistema monetário radicalmente diferente daquele que encontrou quando pegou na batuta dos destinos financeiros da Europa.

O mérito do seu legado será julgado pela história, mas à luz da nossa contemporaneidade, Draghi afigura-se como herói incontestável por ter resgatado o euro das garras da morte. Nas próximas semanas vamos, com certeza, assistir à publicação de uma profusão de avaliações laudatórias dos seus feitos e de rasgados encómios à sua coragem enquanto detentor do elmo do BCE. Afinal, este foi o homem que jurou tudo fazer para preservar a moeda única, tendo para tal empunhado a sua “bazuca”, com a qual arremessou toda a casta de projéteis monetários, desde o financiamento dos estados e empresas da área do euro até à aplicação de taxas de juro negativas.

Será tamanho engrandecimento justificado?

Mario Draghi foi um homem do seu tempo, que se limitou a fazer aquilo que a conjuntura política europeia dele exigia: evitar que o colapso do euro estilhaçasse o sonho de uma Europa unida sob a égide da paz e da cooperação. A realidade, porém, é que o BCE de Draghi só atuou sobre os sintomas e limitou-se a aplicar paliativos. As verdadeiras causas foram branqueadas para que a Europa se pudesse esquivar à dura terapêutica que se impunha.

Mas o mandato de Mario Draghi não foi necessariamente em vão. Ele conseguiu, com a sua incrível parafernália de instrumentos monetários não-convencionais, fazer parar o tempo da economia para deixar a política respirar fundo após a traumática experiência da crise europeia das dívidas soberanas. Acontece que o ar fresco que Draghi insuflou foi desviado do pulmão do projeto europeu para as fogueiras nacionalistas e populistas que foram emergindo pelos quatro cantos do Velho Continente. Por ingenuidade ou impotência, Draghi deixou que a folga financeira que a sua política monetária outorgou às finanças públicas dos estados-membros fosse subordinada aos estreitos interesses dos governos nacionais. Daí a pergunta a que não podemos escapar: “E agora?”

Draghi foi o protagonista de uma corrente que viu no bálsamo monetário uma alternativa à dureza da austeridade que permitiria purgar os efeitos dos desvarios financeiros que deram origem à crise financeira internacional. Só que as políticas monetárias expansionistas encorajaram o endividamento e desincentivaram a reestruturação das economias dos estados-membros menos apetrechados para a metamorfose da ordem económica mundial para uma realidade cada vez mais distanciada do modelo social europeu.

O problema é que o ónus financeiro do excesso de dívida e o custo social do défice de crescimento económico tornou a equação europeia muito difícil de resolver. Como reformar o sistema se tornou uma quase impossibilidade política, ao mínimo sobressalto económico logo surge um clamor generalizado por taxas de juro mais negativas e pela imediata instauração de programas de compra de dívida que garanta que nenhum estado ou empresa relevante morre por asfixia financeira. O círculo é vicioso e intensifica-se. Da senhora Lagarde espera-se que o curte-circuite. Vamos ver com que artes e, mais importante, com que sucesso.

A dádiva de Mario Draghi para os europeus foi tempo. Tempo precioso que escavou das entranhas da história para conceder à Europa a oportunidade para se restabelecer e posicionar no novo xadrez económico global. Ter preservado a União Europeia foi um feito de monta, mas terá sido suficiente?

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